JOGOS PARA ATORES E NÃO-ATORES
(Prefácio/Fragmentos)

             A palavra “teatro” é tão rica de significados diferentes – alguns se complementando, outros se contradizendo – que nunca sabemos ao certo sobre o que estamos falando. De qual teatro estamos falando?
             Antes de mais nada, teatro é um lugar, um edifício, uma construção especialmente projetada para espetáculos, shows, representações teatrais. Neste sentido, o termo “teatro” engloba toda a parafernália da produção teatral – cenografia, luz, figurinos, etc. – e todos os seus agentes – autores, atores, diretores e outros.
             Teatro pode ser também o lugar onde se passam certos acontecimentos importantes, cômicos ou trágicos, que somos obrigados a assistir de uma certa distante, como espectadores paralisados: o teatro do crime, o teatro da guerra, o teatro das paixões humanas.
             Podemos chamar igualmente de teatro aos grandes acontecimentos sociais: a inauguração de um monumento, o batismo de um navio de guerra. Essas manifestações podem ser igualmente designadas pela palavra “rito”. Pode-se também dar o nome de “teatro” às ações repetitivas da vida cotidiana: nós encenamos a peça do café da manhã, a cena de ir para o teatro, o ato de trabalhar, o epílogo do jantar, o almoço épico com toda a família no domingo. Nestes casos, procedemos como atores numa longa temporada de sucesso, repetindo o mesmo texto, com os mesmos parceiros, executando os mesmos movimentos, nas mesmas horas, milhares de vezes. A existência humana pode ser uma sucessão de mecanizações tão rígida e desprovida de vida quanto os movimentos de uma máquina. Esse tipo de “teatro” incrustado em nossas vidas pode também ser chamado de “ritual profano”.
             Frases como “fazer um drama”, “fazer uma cena”, ou, em francês, “faire du théâtre” são usadas para descrever situações onde as pessoas manipulam, exageram ou distorcem a verdade. Neste sentido, teatro e mentira são sinônimos.
             No sentido mais arcaico do termo, porém, teatro é a capacidade dos seres humanos (ausente nos animais) de se observarem a si mesmos em ação. Os humanos são capazes de se ver no ato de ver, capazes de pensar suas emoções e de se emocionar com seus pensamentos. Podem se ver aqui e se imaginar adiante, podem se ver como são agora e se imaginar como serão amanhã.
             É por isso que os seres humanos são capazes de identificar (a eles mesmos e aos outros) e não somente reconhecer. O gato reconhece seu dono, que o alimenta e o afaga, mas não pode identificá-lo como professor, médico, poeta, amante. Identificar é a capacidade de ver além daquilo que os olhos olham, de escutar além daquilo que os ouvidos ouvem, de sentir além daquilo que toca a pele, e de pensar além do significado das palavras.
             Posso identificar um amigo por um gesto, um pintor por seu estilo, um político pelas leis que vota. Mesno na ausência de uma pessoa, posso identificar sua marca, seus traços, suas açoes, seus méritos. Uma fábula chinesa muito antiga — anterior dez mil anos ao nascimento de Cristo — conta a belíssima história de Xuá-Xuá, a fêmea pré-humana que fez a extraordinária descoberta do teatro.              Segundo essa antiga fábula, foi uma mulher, e não um homem, quem fez essa descoberta fundamental. Os homens, por sua vez, apoderaram-se desta arte maravilhosa e, em algumas épocas, chegaram a excluir as mulheres como atrizes — como no tempo de Shakespeare, quando rapazes interpretavam rainhas e princesas. Pior ainda, nas representações das tragédias gregas, as mulheres (algumas vezes) não eram admitidas nem sequer como espectadoras. Por ser o teatro uma arte tão forte e poderosa, os homens inventaram novas maneiras de usar essa descoberta essencialmente feminina. As mulheres inventaram a arte, e os homens, os artis e artifícios: o edifício teatral, o palco, o cenário, a dramaturgia, a interpretação, etc.

             [Segue-se a narração da lenda em que Xuá-Xuá tem um filho com Li-Peng, sem entender o que está se passando com seu corpo. E, também sem consciência do que fazia, Li-Peng leva a criança, sem compreender a relação de parentesco. "Ele era ele, e a criança era o outro"].

              (...)     

           Na antiquíssima lenda chinesa, Xuá-Xuá, ao perder o filho, encontrou-se a si mesma e descobriu o teatro. Foi nesse momento que se deu a descoberta. Quando ela renunciou a ter seu filho totalmente para si, aceitando que ele fosse um outro, outra pessoa. Ela se viu separando-se de uma parte de si mesma. Então, ela foi ao mesmo tempo atriz e espectadora. Agia e observava: era duas pessoas em uma só – ela mesma! Era espect-atriz. Como somos todos espect-atores. Descobrindo o teatro o ser se descobre humano. O teatro é isso: a arte de vermos a nós mesmos, a arte de nos vermos vendo!

Augusto Boal

« Voltar