O Flamengo & Dalva

Quando Dalva nasceu, seus pais nem de longe desconfiaram que ela seria flamenguista. Portugueses de fé e crença, apostaram nas caravelas e na maresia fadista de Amália: Dalva seria vascaína e os raios que os partissem se assim não fosse.
  Nos primeiros meses de vida, Dalva demonstrou a estranha habilidade de acompanhar os acordes das guitarras portuguesas com o telecoteco do chocalho. Enquanto o fado desenhava no ar o lamento ladrilhado da Mouraria, Dalva ritmava a alma lusitana com o batuque de Sinhô e Donga.
Até então o samba não tatuara as lajotas daquela casa que a essa altura já não era mais, com certeza, uma casa portuguesa.
  Por volta dos cinco anos de idade, quando seus pais ainda nutriam esperanças cruz- maltinas, Dalva surpreendeu-os no dia em que despachou um pratinho de farofa ao lado do galo lusitano que guardava a casa, do alto da cristaleira.
  Depois de muitas farofas regadas com azeite puro de dendê, Dalva surpreendeu-os ainda mais quando, aos quinze anos de idade, trouxe para dentro de casa uma estranha entidade: um diabo vermelho e preto a segurar uma bola de futebol.
Como era uma bola, e não um tridente, os pais de Dalva pensaram que o diabo era mais um santo e deixaram que ela o colocasse no altar, juntamente com um radinho de pilha. Das alturas, já enfadado com as milenares tardes de descanso, Deus aprovou o sacrilégio.
O convívio do diabo rubronegro com os outros santos transcorreu pacífico e, se não fosse pela estranha nódoa vermelho e preta que "do nada" surgira no manto azul de Nossa Senhora de Fátima e pelo pulinho que Santo Antônio dava, toda vez que o rádio gritava GOOOOL, se poderia mesmo dizer que tudo corria às mil maravilhas.
A devoção de Dalva pelo estranho santinho era tão intensa que acabou por provocar milagres: da noite para o dia, depois de uma tarde inteira de novena ao pé do radinho de pilha, a cidade se abria em ruas coloridas por bandeiras rubras a tremular ao som do batuque negro. O domingo cerrava a cortina anunciando uma segunda-feira em festa.
Na feira, os portugueses vibravam com a montanha de frutas, verduras e legumes que a cidade consumia. Não sei se por razões econômicas ou por milagre mesmo, a Lusitânia se viu repartida entre dois amores. De um lado, lá dos confins do Atlântico, o mar lisboeta tremulava ondas cruz-maltinas; do outro, a fartura esbanjada do rebolar da alegria vertia sangue, suor e cerveja nos seus corações.
No dia em que o coração lusitano abriu-se de vez para a fé sanguínea da pequena Dalva, aconteceu o derradeiro milagre: lá pras bandas de Quintino nascia Zico, o menino que Deus enviou ao mundo para alegrar ainda mais os seus dias de descanso.
A alegria foi tanta que Deus efetivamente se fez brasileiro. Disfarçou-se de Joaquim Pereira e foi à Gávea requerer a cidadania.
Ao morrer, Dalva pediu que a enterrassem com a bandeira do Flamengo e o radinho de pilha. As pessoas pensaram que era desejo de torcedor e atenderam o seu pedido. O que elas não sabiam é que o pedido tinha partido de Deus...

Marcia Frazão

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