Os Diletantes

Dois amigos no caminho de sempre. No entanto, a vida tem seus encantos e os dois, ao adiantado da hora, se acalentam de lembranças e de risadas que de antigas, são modernas.

-- Veja bem, o processo de viver. Não adianta, é irreversível.
-- Você diz o óbvio.
-- Não estou brincando. Viver é um raro ofício, poucos o sabem. Há os que vivem melhor, porém há os que nem existem para si próprios. Comprazem- se em dar tudo de si aos outros, enquanto os outros nada lhes trazem. Quando chega o tempo, isso é, o Tempo, sua hora de receber o que deram de si já passou.
-- Não acredito em uma palavra que você me diz. Tudo o que você diz vem carregado de ar blasée, um ar de quem não se importa com nada desse mundo; eu lhe pergunto, e daí? Óbvio que sei a resposta!

Os dois olham o horizonte à frente. Ambos se calam, o primeiro amigo com um copo à mão, quase vazio. O outro, o que falava do tempo, ou melhor, do Tempo, esvazia o olhar no ar carregado de poeira e absurdos. O silêncio se amotinou, então lhes chega aos ouvidos essa gritaria contínua que é o burburinho da grande cidade que nunca dorme.

-- ...E fala como se fosse a coisa mais normal do mundo. Absurdo! Absurdo!
-- Que posso fazer se assim é desde que Noé salvou-nos do Abismo de águas? Afinal, o que digo de tão absurdo assim? Já não dialogo com você, dialogo com o meu próprio conjunto de crenças. Veja, esse cigarro na mão da moça ( e aponta uma garota que passa ao largo, indiferente ao seu comentário). Não é uma alusão ao tempo, ou melhor, ao Tempo? Que afinal ela sorve em tragos, mas que se esgota rápido, do ponto de vista do cigarro. Ela, no entanto, o sorve com prazer. E frui do prazer da vida que o cigarro pode ter tido. Não será assim com o que fazemos? Isto é, o Tempo nos frui, de maneira que nossa vida se abrasa como a cinza que cai do cigarro dela, em segundos cósmicos. Eu não acho que o cigarro teve a vida que lhe valeu, pois ele viveu apenas a servir àquela que o fuma...
-- Quer dizer com isso que somos um engodo?
-- No melhor sentido da palavra. Nossa consciência é apenas um subproduto desse engodo. Tudo o que fazemos é tentar apreender o que podemos...Há outros, porém, que fazem nosso cigarro arder...

O amigo esvazia o copo, cheio de cólera e ar. Já não há tempo para esperar, ou melhor, não há tempo para fruir do Tempo, os dois estão ali, sentados no bar, olhos secos de poeira, corações enxutos de lágrimas, vidas ressequidas de tanto viver as cinzas de sua própria perdição.

-- Meu amigo, você tem asas mas não voa. Você se exilou voluntariamente no pior dos refúgios, você não percebe mas já brilhou nos cantos todos que podia. Já pensou em...
-- ...Suicídio?

Ambos olham as gentes, correndo como formigas, berrando nas esquinas de sonhos, atropelando suas vidas mesquinhas e vagabundas. O copo de cólera caiu, quebrou-se e ambos olham o garçom que vê as migalhas de vidro e pensa: "Mais uma", e traz mais uma dose âmbar de prazer aos dois diletantes grisalhos...

-- Palavra, amigo, jamais pensei nisso. Mas que é inquietante, é.
-- Tudo se acaba então?
-- Por hoje. 
-- Então vamo-nos, enquanto o tempo não nos mostra as horas.
-- Vamos!

Juntam-se aos cacos do mundo, misturados ao caos de gente, cacófatos, palavrões, xingamentos e olhos torcidos. No telão, a surpresa maior. Um gol de craque faz reviver por algum tempo o Tempo do mundo todo. E é só.

Flavio Gimenez

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