PODE COMEÇAR SEM MIM

                             para Fernando, meu irmão

                    Poderia ser diferente: eu não gosto muito de carne assada. Não gostar de papai & mamãe, deus me livre. O almoço é lento como se todos estivéssemos apaixonados. Me sinto como num elevador, de cabeça baixa para as pessoas desconhecidas que me rodeiam, subindo e descendo e parando. Eu estou vazia e sou Caim. Você continua sonhando, diz meu pai. Tenho medo de ser internada: nunca acreditei em anjos ou papai noel, mas os hospícios existem sim. Essa casa é meio... assim. A empregada é triste. O telefone não é meu. Eu sonho,. Aoenas, apesar. A comida do meu irmão parece estar enxarcada de anestesia. Ele sorri para a câmera, alheio ao sangue que pinga do meu corpo. Minha mãe adverte que a toalha estava limpa. Mas eu sangro, uma vingança irreversível. Somos muito felizes, eles dizem. Na próxima cena meu pai grita e esbofeteia meu irmão. O lustre psicografa desespero e se estilhaça sobre a mesa, mas estamos apaixonados e lentos, ainda. Separo normalmente um caco do lustre no meu prato. Seria um bom pretexto para não comer a carne assada — mas não devemos mexer nisto, a vida é estática. As plantas não se movem. Minha mãe lembra que as batatas estão ótimas e logo vão esfriar. Batatas frias são cruéis como o desespero e eu numa crueldade compatível às batatas, desejo pular do 8º andar e ser feliz na calçada. Não sou mais uma criança, no entanto. Estou vazia. Tenho medo. E solidão, e silêncio, e distância. Não mais criança; mas tenho vontade de dizer mamãe, mamãe. Ainda não disse, porque o iceberg mostra apenas o lóbulo de sua orelha e um brinco de ônix.

 Claudia Figueiredo

Do livro: "Será você, querida leitora?", Machado Horta Editora e Publicidade, s/ data, s/local

« Voltar