MEDUSA

Nem sei direito o que me leva a escrever. Talvez seja a felicidade. Sim, felicidade. Ele esteve aqui ontem. Estava lindo, maravilhoso, sua barba me fez estremecer. Tão imponente, majestoso. Aliás, como convém a um deus. Espero que Anfitrite não descubra nosso romance. Será que devo dizer a ele que... Não, melhor deixar a natureza seguir seu caminho natural, pois faltam, ainda, muitos meses.

Ontem minhas irmãs Ênio, Pêfredo e Dino passaram por aqui. Por todos os deuses e deusas, como estão velhas! Bom, o que poderia esperar? Já nasceram velhas! São chamadas de Gréias. Até hoje não me acostumei direito com essa mania que elas têm de ficar passando o olho e o dente umas para as outras. Difícil reconhecer algum parentesco entre nós, mesmo sabendo que todas nascemos do mesmo ventre. Estou com saudades de meus pais. Há muito tempo que eles não nos visitam. Acho que a última vez foi há cem anos, ou já se passaram duzentos? Difícil saber quanto tempo se passa no mundo dos humanos, por aqui: essa região é distante de tudo e de todos. A única beleza que temos aqui é o jardim das Hespérides. O dragão que toma conta de lá é meu amigo, mas, mesmo assim, não me deixa pegar nenhuma maçã. Diz que pertencem a Hera. Bah, aquela perua, que não larga do pé de Zeus! Bom, com um homem daqueles também tem que ficar em cima, marcação cerrada mesmo.

Do jardim tenho uma visão bem bonita. Ao fundo podemos ver o Atlas segurando a abóbada celeste. Também quem mandou querer lutar contra o Zeus? Tá eu sei, ele obedeceu a mãe dele, Gaia que não queria ver os filhos presos depois da Titomaquia - acho que é assim que os humanos chamam a luta dos deuses contra os seus ancestrais Titãs. Os gigantes desafiaram os deuses e perderam, como castigo, o Atlas fica ali, carregando aquele peso todo.

Hoje a coisa está feia aqui: as minhas outras irmãs, Esteno e Euríale, estão brigando. Melhor nem me meter. Afinal elas nasceram imortais, tal qual as Gréias. Eu não: nasci mortal. Estranho isso, pois meus pais são deuses legítimos, não como muitos que andam por  aí dizendo que são isso e aquilo e, na verdade, cantam vantagem sem ser nada disso. Muitos heróis que andam por aí são de mães mortais, portanto, tão frágeis como eu. Complicado esse negócio. Pai deus, mãe humana: filho ou filha mortal. Ah, deixa para lá, eu sou feliz do jeito que sou.

Meu maior prazer é mexer nas minhas estátuas. Acho que já são quatro ou cinco mil, sei lá, nunca me preocupei em contar. Outro dia Esterno veio reclamar que eu precisava organizar aquilo tudo, colocar uma ordem, tirar do nosso quintal, pois já não cabe mais nada. Naquele dia mesmo eu arrumei mais duas. Quando cheguei em casa, com as ditas cujas, nossa, o mundo quase desaba na minha cabeça! Mas eu sempre dou um jeito, arrumo um canto que não atrapalha ninguém e coloco lá minhas criações. Acho que vou conversar com o dragão para ver ser posso colocar as estátuas em volta do jardim - acho que ficaria bonito. Não que o jardim não seja belo, muito pelo contrário, é lindo, e a macieira que dá frutos de ouro é a árvore mais linda de todas. Mas nem posso chegar perto: "- Ordens de Hera" - diz o dragão.  Essa Hera! Qualquer dia desses, saio daqui e vou tirar umas satisfações com ela: onde já se viu, proibir e minhas irmãs e eu de passearmos no jardim!

Nesses últimos dias ando tendo uns sonhos esquisitos, porém, quando acordo, não me recordo direito do que acontece neles. Preciso ficar atenta, pois acho que Athena e Hermes estão tramando alguma coisa. Não sei de onde vem essa impressão, mas eu sei que os deuses nunca gostaram muito nem de mim, nem das minhas irmãs. Ah, deixa para lá, o negócio é cuidar das estátuas! Agora estou pensando em organizá-las por tamanho: as grandes ao fundo, com espaços entre elas, de modo que consiga colocar as menores nestes vãos. Acredito que ficaria bonito assim. Ontem eu coloquei algumas em volta do jardim, num cantinho afastado. Dessa forma, se Hera aparecer, não ficará histérica. Hoje acordei um pouco enjoada: acho que são os bebês. Ah, não contei? São dois! Ainda não falei nada para o Posseidon, mas acho que ele vai ficar contente. Faz algumas semanas que ele não aparece, mas como deus e homem é tudo igual, depois que consegue aquilo que quer fica assim: meio distante. Não posso recriminar ninguém. Sei que ele nunca vai largar sua mulher para morar comigo. O que vai ficar dessa relação são os filhos que carrego no ventre. Além do mais,  para morar com ele, eu precisava ir para o mar. Logo eu, que fico enjoada só de ver o balanço das águas de um simples lago! Imagine morando no palácio dele! Não, fico aqui mesmo. Se ele não aparecer mais, paciência, ficam as lembranças.

Estou com aquela impressão de novo, alguma coisa vai acontecer hoje e não vai ser boa. É algo indefinido, como uma premonição. Sei que o destino já marcou algum acontecimento, mas não sei precisar o que é. Outro dia vieram me contar para tomar cuidado com um tal de Perseu. Disseram-me que bebeu demais em um banquete que ofereciam ao rei  Polidectes e,  bêbado, ele teria prometido para esse rei a minha cabeça. Ah, ele que venha! Esses humanos são engraçados: bebem, não sabem o que falar e prometem besteiras. Acho que em breve terei mais uma estátua para minha coleção. Ah, as estátuas, estão ficando bonitas com a nova organização que estou fazendo. Vou aproveitar para fazer o inventário delas: contar, classificar, datar. É, datar: cronologia! Eu lembro de cada uma delas, individualmente. Algumas, mais antigas, possuem pequenas rachaduras - acho que vou precisar improvisar algo, pois não quero que nenhuma se quebre. Deu trabalho fazer cada uma delas e, apesar dos protestos das minhas irmãs, não pretendo me desfazer de nenhuma delas.

Estranho, quem é aquele homem que está vindo ali? De costas? Droga, as meninas estão dormindo! Eu mesma terei que atendê-lo. Nossa as cabeças de serpente hoje estão agitadas! Faz tempo que não ficam neste estado. Será que tem alguma coisa a ver com o estranho? Ei, tem alguém com ele! Nem acredito: a danada da Athena está carregando um escudo de bronze e vem na frente do homem! Todo polido - bonito esse escudo. O estranho ainda anda de costas. Paciência, cada um com sua mania. Vou lá ver do que se trata. Quem sabe não consigo uma estátua novinha em folha? Por todos os deuses e deusas! Ele não se vira para me ver. Está tão pertinho. O que é aquilo nos seus pés? Sandálias aladas? Sinto o dedo do Hermes em tudo isso. Afinal, está aqui.  Agora vai ter de se virar para me olhar: não têm jeito. Ele ainda carrega uma foice. Será que esse aí é o....

Com um golpe único, Perseu decepa a cabeça da Medusa, colocando-a no alforje. Do sangue jorrado do pescoço nascem Pégaso (o cavalo alado) e Crisaor (um gigante que brande uma reluzente espada de ouro). O barulho acorda as irmãs da Górgona, que tentam pegar Perseu, mas o herói escapa, indo viver outras aventuras depois de livrar o mundo da única Górgona mortal. Tempos depois, a cabeça do monstro é adicionada ao escudo de Athena.

CARONTE

             Lá estão eles novamente. Sempre igual! Todos precisam atravessar para a outra margem, esse é o meu trabalho. Os choros cessam quando encosto a barca, todos me olham espantados. Faço isso há tanto tempo que não ligo para os lamentos e queixumes. Sigo um padrão estabelecido quando Gaia ainda era jovem: ordeno que façam uma fila, eu mesmo fico á entrada da barca, todos têm de pagar o óbulo, uma moeda de prata. Aqueles que por algum motivo não podem pagar a travessia estão condenados a ficar ali mesmo. Só posso atravessar os que pagam.
             Com a barca cheia, tomo posse do timão e indico para que peguem os remos, eu só conduzo a barca, o trabalho de remar pelas águas turvas e escuras do Estige é dos passageiros e passageiras.
             A viagem começa lenta, como sempre, muitos demoram em pegar o ritmo das remadas, eu preciso ficar gritando, ordenando, ameaçando. Enfim estabelecem um bom padrão e seguimos em frente... Na outra margem o cão de três cabeças – Cérbero – aguarda os recém chegados. Atrás do animal os portões do palácio onde o julgamento será efetuado. Alguns vão para os Campos Elíseos, outros ficarão vagueando no próprio Hades. Isso pouco me importa, quero apenas fazer meu trabalho, cumprir com a minha obrigação.
            Sempre há passageiros, Tânatos não descansa nunca, e como conseqüência eu também não.
             Nunca tenho tempo para cuidar dos remos, ou consertar o timão, nem mesmo posso cuidar de eventuais danos na barca, não posso parar, meu senhor – Hades –  é exigente. Sua rainha, a bela Perséfone, também o é. Por sorte, mesmo após todo esse tempo de uso contínuo, o material permanece em bom estado, portanto é uma preocupação a menos.
             Estou nisso há uma eternidade, antes mesmo dos deuses do Olimpo assumirem o controle do mundo, eu já estava aqui.
             Às vezes acontece alguma novidade. Como quando Héracles desceu do mundo superior para cumprir um de seus doze trabalhos, seu irmão pediu por Cérbero. Eu exigi o óbulo, mas o filho de Zeus, muito mais poderoso, me subjugou, fui obrigado a fazer a travessia de um vivo, suprema blasfêmia. Mas Hades entendeu a situação e não me puniu. Quanto ao intruso ele teve que pegar o cão com as suas mãos nuas, exigência de meu amo e senhor. Sei que ele cumpriu a exigência e levou o animal para o outro mundo, devolvendo-o logo em seguida.
             Outra novidade foi o mortal Orfeu. Destemido e profundamente apaixonado pela esposa Eurídice, morta por uma cobra, que a jovem pisou acidentalmente quando escapava do ataque do pérfido pastor Aristeu.
             Orfeu desceu aqui, com sua lira. Seu canto repercutiu por todo o Hades, jamais eu escutei uma melodia tão maravilhosa, uma voz que jamais será igualada, seja por deuses ou homens. Até Perséfone se comoveu com as palavras cantadas pelo jovem, e em uma decisão inédita autorizou a volta de Eurídice. Tudo teria sido perfeito, não fosse Orfeu tão prematuro. Ele não deveria olhar para sua esposa até que tivesse atravessado a fronteira do mundo infernal, faltando pouco para alcançar seu objetivo o maravilhoso cantor ousou olhar para trás, na esperança de ver sua amada esposa. A alma de Eurídice foi violentamente sugada de volta, e todo o esforço do jovem foi em vão. Ele ainda tentou, mas dessa vez eu não fiz a sua travessia. As leis e normas do Hades são inflexíveis, ninguém pode violá-las sem arcar com as conseqüências funestas disso.
             Ah! Não posso me esquecer do esperto Sísifo. Para que o deus-rio Esopo fornecesse água para sua cidade o mortal contou o destino de Egina, filha de Esopo, raptada por Zeus que ficou encantado com a beleza da jovem.
             Como castigo pela afronta, Zeus enviou Tânatos para conduzir Sísifo para o mundo inferior, mas o esperto mortal não só ludibriou o enviado, como também o aprisionou, quebrando a ordem natural das coisas. Por um tempo ninguém morreu no mundo... Estando Tânatos prisioneiro não havia ninguém para aplicar os golpes de foice que ceifam a vida dos vivos. As margens do Estige ficaram vazias, não havia novas almas para alimentar o reino de meu amo e senhor. A minha barca ficou encostada em uma das margens sem utilidade, assim como eu.
             Mas o grande Zeus enviou Ares para libertar Tânatos e levar Sísifo para o mundo inferior. Com isso a ordem natural foi restaurada, mas o mortal ainda ousou mais um golpe. Convenceu sua esposa a não lhe prestar os ritos fúnebres e uma vez à frente de Hades convenceu este que deveria voltar para castigar a mulher por essa heresia. Meu amo e senhor autorizou a volta de Sísifo que uma vez mais voltou à vida. E teria permanecido no mundo superior não fosse nova intervenção de Zeus, desta vez o pai dos deuses enviou Hermes, e finalmente o astuto teve seu destino final. Ele fica lá, tentando erguer uma monstruosa pedra de mármore montanha acima, mas toda vez que se aproxima do final de sua tarefa a pedra rola novamente para baixo, fazendo com que ele comece de novo sua infrutífera missão.
             Essas foram as situações fora do normal que eu me lembre.
             Essa é a minha rotina, transportar almas entre as margens do Estige, não posso atravessar quem não me pague o óbulo, ou não tenha tido os ritos fúnebres, nem tampouco algum ser vivo. Quem eu sou? Sou filho da Noite com o Érebo, sou o condutor da barca dos mortos, me chamo Caronte, e aguardo o dia que vou te conhecer.

Abelardo Domene Pedroga

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