Uma mulher, muitas histórias

Ela era bela. Filha de um deus marinho não fora agraciada com a imortalidade, se bem que vivesse como princesa no oceano.

Ele, o poderoso Netuno, o segundo na hierarquia dos Deuses do Olimpo, casara-se com Anfitrite, a mais formosa das cinqüenta filhas do velho Nereu chamadas Nereidas, em homenagem ao pai.

 Passada a empolgação do casamento, Netuno, à imitação de Júpiter, o rei dos Deuses e seu irmão, voltou a olhar com cobiça para outras mulheres. Anfitrite o desprezara antes do matrimônio, assustada por seu temperamento intempestivo. Vendo-o pacificado pelo amor cedera a seus apelos, acabando por se apaixonar. Não contava que o marido a desfeiteasse tomando várias concubinas.

–  Estarei condenada a ser uma segunda Juno?, perguntava-se enraivecida.

Netuno disfarçava, sorria, cumulava-a de jóias, mas sempre que podia dava uma escapada.

Em um passeio ocasional, recostado em seu coche conduzido por golfinhos, o Deus avistou uma jovem nadando em seus domínios. A fina veste que a cobria, aderida ao corpo, denunciava sua esplêndida nudez.

–  Perfeita como uma deusa. Como não a vi antes?

Seguiu-a o mais discretamente possível até a praia, o que para ele não era fácil, dominado que estava pelo desejo. Viu-a brincar, despreocupada, entre os rochedos. A cabeleira suntuosa, ao secar, parecia dotada de vida. Os fios negros, sedosos, agitavam-se indomáveis. Não mais se contendo o Deus revelou-se em sua magnificência.

–  Minha linda jovem, como te chamas? Quem são teus pais?

À medida que falava encaminhava-se para ela com uma expressão arrebatada, prova evidente dos seus sentimentos.

–  Por Júpiter, é Netuno, o Deus dos Mares. Como é bonito e majestoso.

Ocorreu, então, algo inusitado que mudaria para sempre o destino daquela mulher. Encantado pela imponência das formas da bela criatura, o Deus perdeu sua arrogância dirigindo-se a ela como simples mortal.

–  Não tenhas medo, querida. Só quero admirar tua beleza. Permites que o faça?

Os olhos verdes da desconhecida se apaziguaram. Meio envergonhada escorou-se numa pedra enquanto Netuno, invejando o sol a acariciá-la, sentou-se na areia. As horas passaram lentamente e o Deus, conhecido por sua impetuosidade, cumpriu o prometido mantendo-se à distância, apenas contemplando-a. Enternecida, a jovem fixava o imortal a seus pés invadida por súbita languidez. Com único gesto fez cair a túnica, desnudando-se. Netuno, em um salto, estava a seu lado.

–  És minha!

Não havia, no mar ou na terra, um local onde os dois amantes pudessem se amar em paz. Apaixonado, Netuno negligenciava a rainha despertando-lhe terrível ciúme. Finalmente, o casal achou um modo de fugir à vigilância de Anfitrite. Marcaram de se encontrar no templo de Minerva, filha de Júpiter, parida pelo próprio pai. Lá se entregaram à paixão irrefreável que os consumia.

–  Mais, mais, murmurava a jovem, enlaçando com as pernas a cintura do amante. Amaram-se até a exaustão. Combinaram de se separar antes que a Aurora anunciasse o novo dia, pois ficariam expostos e afinal de contas, aquele era um bom esconderijo. A contragosto, Netuno cobriu-se com o manto e girando sobre si mesmo desapareceu em uma rajada de vento.

A moça juntava as vestes quando, de repente, apagaram-se as luzes. Ao virar-se, assustada, deparou com a silhueta de uma mulher. Dela provinha uma luminosidade que se irradiava por todo o santuário.

–  Minerva!

Armada dos pés a cabeça, com escudo e capacete reluzentes, a Deusa da Guerra, das Artes e da Sabedoria, exalava puro ódio. De há muito detestava Netuno com quem disputara a cidade de Atenas, assim batizada em sua honra, vencedora que fora da contenda. Mas nada podia fazer contra ele, imortal e irmão do seu pai. A ira da divindade abateu-se sobre a mulher nua, somente coberta pelo longo cabelo.

–  Sacrilégio! Vocês profanaram meu templo.

Apontava a lança para a moça, como se disposta a transfixá-la. Conhecida por sua virtude ressentia-se com a volúpia do casal.

–  Perdão, Senhora, murmurou a infeliz, de cabeça baixa.

–  Você, que ousou desafiar-me com sua luxúria em minha própria casa, vai pagar muito caro por esta blasfêmia.

Em pânico, a jovem implorou:

–  Perdão, Senhora. Meu mal foi amar demais.

–  Vamos ver se teu amante merece todo este amor, sorriu, malévola, a Deusa.

Netuno estranhou a falta de notícias. Já anoitecia quando uma onda enorme aproximou-se do seu palácio.

–  Quem ousa? Interrompeu-se. A visão medonha tirou-o do sério. Despejou sua dor provocando maremotos e intempéries ao fincar, alucinado, o tridente no fundo do oceano.

–  Maldita Minerva! Terias feito melhor matando-a. E tu, minha adorável Medusa, o que será de ti?

 
 

Existe, ainda, outra versão para a história.

Descontrolado ante a beleza da jovem, Netuno a teria perseguido até o templo consagrado à Minerva, onde aquela se refugiou. Desprezando o local sagrado, ele a violentou ali mesmo em frente à estátua da Deusa, abandonando-a em seguida. Incapaz de se vingar do poderoso Senhor dos Mares, Minerva voltou sua fúria irracional contra a bela Medusa transformando-a em monstro abominável.

Danna D.

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