CAIO FERNANDO ABREU – DA CÓLERA AO SILÊNCIO

             A primeira vez que encontrei o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu (1948-1996) foi no inverno de 1990, em Registro, uma pequena cidade do interior de São Paulo, quando a poeta Leila Miccolis me comunicou que eu dividiria o mesmo quarto de hotel com ele. Eu era um dos inúmeros convidados e ele o homenageado em um encontro de literatura “marginal”. Passamos três dias numa correria de palestras, debates, leituras poéticas, restaurantes e bares, sem tempo para qualquer conversa profunda. Caio, ferino e resmungão, não estava feliz. O seu silêncio sombrio, magreza excessiva e grandes olhos de mágoa e desalento , davam-lhe um aspecto vampiresco. Muito jovem, tive medo, evitando intimidade com ele o máximo que podia. Só uma noite, a última, depois de grande bebedeira, conversamos sobre literatura e cinema. Ele empolgou-se ao recordar a atriz Odete Lara – um dos seus ícones – e tratou-me com aspereza ao ouvir a confissão que só lera uma única obra sua: Morangos Mofados (1982), considerado o maior sucesso do escritor. Então percebi a sua sede de reconhecimento e idolatria.

              No ano seguinte, em São Paulo, nos reencontramos duas vezes numa mesma semana: nas residências de Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst. Eu trabalhava na Editora Siciliano e estava sempre visitando escritores por exigência profissional. No apartamento da autora de “Horas Nuas”, um Caio gentil lembrou Registro com ironia e fez-me uma comparação inusitada: “Antonio, você parece galãs de cinema dos anos 50. Algo entre John Gavin e James Garner”. Nunca mais me deixou de chamar Gavin ou Garner, dependia da disposição. Na Chácara do Sol de Hilda Hilst, o clima foi tempestuoso. Temperamentais, rancorosos, eles haviam cortado relações há alguns anos e Caio tentava recuperar o tempo perdido de uma antiga amizade iniciada em 1968, em plena ditadura militar, quando foi perseguido pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), tendo se refugiado no sítio da escritora . Não deu certo, Hilda Hilst, dura, abriu a boca sem piedade e Caio partiu de Campinas soltando fogo pelas ventas. A situação era tensa e mal-resolvida, aparentemente sem cura. Hilda decidiu queimar todas as cartas do ex-amigo, acreditando assim afastá-lo para sempre de sua vida. Dezenas de cartas maravilhosas, confessionais, com contos e poemas inéditos, do final dos anos 60 até a década de 80. Implorei que não o fizesse. “Quer para você? São suas. Leve-as daqui e bem rápido, antes que eu me arrependa”. “Fico com elas, Hilda, se um dia desejá-las de volta, e só pedir”. Nunca o fez. Tenho até hoje essas missivas solitárias, desesperadas, inseguras e delicadas. Caio Fernando Abreu adorava escrever cartas, assinando muitas vezes como Caio F. - era o primo intelectual da "Christiane F. drogada e prostituída". Na verdade ele se dava várias alcunhas, dependendo do momento em que estava vivendo. Nessas cartas, numa espécie de voyeurismo literário, espiamos e tomamos parte da intimidade do escritor, passando a ser o confidente a quem ele conta suas peripécias pela vida. Demonstrando uma enorme disposição para o diálogo e a troca, escrevia tanto para velhos amigos quanto para se apresentar a pessoas que não conhecia (escritores, por exemplo) e expressar sua admiração. Assim fez amizade com Hilda, Clarice Lispector, Nélida Pinon, Cazuza e Marcelo Rubens Paiva, entre outros. Morando em diferentes cidades, escrevia loucamente, em um ritmo quase alucinante, fazendo parecer que ele se alimentava com esse hábito, em um tempo em que não existia e-mail e no qual as cartas poderiam tardar dias. No fundo, entre o fuxico e a confissão, essas cartas tinham uma função terapêutica.

             Iniciou-se assim minha estranha, intensa, amarga e comovente amizade com Caio Fernando Abreu, um ser cheio de mistérios, de segredos. Ele telefonava altas horas da noite, deprimido, bêbado, e desabafava num monólogo duro. Algumas vezes estive no seu apartamento na Haddock Lobo e, vez ou outra, saíamos pelos bares sórdidos do centro da cidade. Era uma ligação fadada ao fracasso, sem confiança ou afeto, talvez somente por minha conexão profunda com Hilda. Terrivelmente inseguro em relação a sua literatura, Caio duvidava de seu talento e maldizia os deuses por não escrever como Clarice Lispector ou a própria Hilda Hilst. Eu temia suas palavras perversas, sua tristeza absoluta, sua descrença em tudo e todos, suas críticas ácidas e fazia tudo o que podia para evitá-lo. Paranóico, emocionalmente instável, hiper-sensível, comoventemente frágil e absolutamente infeliz, Caio parecia sofrer todos os dias. Ele tinha explosões repentinas de cólera seguidas de um silêncio assustador. Via nas pessoas otimistas e cheias de sonhos seres imperfeitos e indignos de contar com sua amizade. Numa madrugada, no Sujinho, chorou muito sem qualquer motivo aparente, finalmente lamentando que não fosse levado a sério como escritor. “Como não, Caio? Todo mundo admira Morangos Mofados ”, apazigüei. “Gostam porque falo de drogas e sexo sem tabus. Somente por isso”. Foi o nosso último encontro cúmplice. Voltei a vê-lo mais duas ou três vezes na redação da revista Interview e em vernissagens. Ele só dizia: “Como vai, Gavin?”, e nem ao menos esperava resposta. Sabia que era portador do vírus HIV, o seu aspecto debilitado deixava evidente tal tragédia, mas nunca conversamos a respeito da doença que o consumia. Era uma época difícil para os portadores dessa enfermidade. Tinham pouco tempo de vida, em geral às voltas com tratamentos penosos. O coquetel veio muito depois.

             Logo Caio F. partiu para a sua derradeira temporada européia, escrevendo de lá bonitas crônicas para o jornal O Estado de S. Paulo. Recebi quatro cartas dele, todas se queixando da solidão, das dificuldades financeiras – inclusive trabalhou como porteiro em um prédio – e pedindo notícias de Hilda Hilst. Nunca pude responder qualquer uma delas, pois não havia o endereço do remetente. Em 1992, Hilda rompeu bruscamente comigo, motivada por um pequeno ensaio que escrevi sobre sua vida e obra. De volta a Bahia, nada mais soube sobre Caio. Em 1996, quando o escritor de Santiago do Boqueirão (RS) morreu, aos 47 anos, eu já vivia longe, na Europa. Ele passou os últimos meses na casa dos pais cuidando de roseiras, fazendo canteiros com arruda, alecrim e manjericão.

             Debochado e louco por sexo, Caio se auto-denominava um devasso. Estava totalmente à vontade com sua condição homossexual, numa época não tão bem tolerada na sociedade. Até brincava dizendo que iria escrever um gigantesco livro chamado “Os Homens que eu Tive”, uma versão gay de “Mulheres”, de Bukowski. Ele foi um grande contista. Sua ficção se desenvolveu acima dos convencionalismos de qualquer ordem, nos deixando uma herança reflexiva sobre a solidão, a homossexualidade, a amizade e o amor. O sentimento de identidade não poderia ser maior. Um retrato de uma época, de maneira às vezes bem-humorada, outras trágica, mas sempre permeadas por um imenso afeto. Sua obra, escrita num estilo econômico e bem pessoal, fala de sexo, medo, morte e, principalmente, apresenta uma visão dramática do mundo urbano moderno. Escreveu entre outros: Ovo Apunhalado (1975), Triângulo das Águas (Prêmio Jabuti, 1984), Onde Andará Dulce Veiga? (1990, que está sendo filmado por Guilherme de Almeida Prado, com Maitê Proença como protagonista), Bem Longe de Marienbad (1994) e Ovelhas Negras (1996). Dedicou-se também ao trabalho jornalístico, em revistas como Pop, Nova, Veja e Manchete, foi editor de Leia Livros e colaborou nos jornais Correio do Povo, Zero Hora, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo. Em 1973, querendo deixar tudo para trás, viajou para a Europa, lavando pratos, fazendo traduções e se virando como podia. Primeiro andou pela Espanha, transferiu-se para Estocolmo, depois Amsterdã, Londres e Paris . Retornou a Porto Alegre em fins de 1974, com os cabelos pintados de vermelho, usando brincos imensos nas duas orelhas e se vestindo com batas de veludo cobertas de pequenos espelhos. Em 1983 transferiu-se para o Rio de Janeiro e em 1985 passou a residir novamente em São Paulo. Uma das aflições desse escritor era a falta de dinheiro. Ganhou muitos prêmios, foi traduzido para vários idiomas, porém não conseguia resolver os problemas financeiros Ele reclamava, confessava freqüentemente que a vida estava apertada, torcia para um dia ficar rico, mas sempre viveu muito modestamente. Pensava muitas vezes em desistir da literatura. “Não desisto de teimosia meio-burra”, disse-me certa vez. Felizmente foi teimoso até o fim, deixando uma obra marcante farta de sensibilidade e simbologia da cultura pop.

Antonio Naud Júnior

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