Do viver inconsistente

            Clarice Lispector, a estranha, escreveu um poema intitulado “A lucidez perigosa”, que faz jus à si mesma e à sua fama. Começa dizendo: “Eu estou sentindo uma clareza tão grande, que me anula como pessoa atual e comum. É uma lucidez vazia, como explicar? Assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise”. Penso ser esta sensação de clara percepção do mistério das coisas e do mundo uma epifania, pela qual o Ser transcende o sentido trivial do existir, apreendido pelos cinco sentidos. É uma lucidez para a qual não existem palavras explicativas. Assim como um cálculo matemático justo e perfeito, que fale por si mesmo, como um símbolo.

            E segue Clarice: “Estou por assim dizer vendo o claramente vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois eu estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além de que: que faço desta lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode tornar-se o inferno humano – já me aconteceu antes”. De fato, ver, sentir, perceber o vazio-cheio do que se apresenta em total claridade, mesmo sendo pura potencialidade, é o que nos transporta para além dos limites da dualidade. Isto é: a mente não pode abarcar ou entender aquilo que a transcende.

            “Existe em mim alguém melhor do que eu”, escreveu Fernando Pessoa, em alter-ego (ou em estado) de Álvaro Campos. A lucidez ou a verdade podem levar ao inferno, porque o retorno à ilusão pode ser terrível, e a permanência na lucidez cortante é de um estranhamento atroz, que a sociedade dos fantasmas robotizados não aceita, e pune até com o ódio e a morte. Tantos,”esquisitos” como Clarice, tiveram visões do esplendor, ou captaram clarões da eternidade,  e “piraram de vez”, após a experiência, ou foram  perseguidos e mortos, tidos como subversivos ou lunáticos!

            A própria pessoa pode entrar em desinteligência com ela mesma, ao ver-se dividida entre um ego que separa, exclui, discrimina e mente, e um Eu que, em silêncio sábio, apenas observa, desapegado. Ao perceber que o inferno não está lá fora, mas vem de dentro, a pessoa que tem a experiência da lucidez lancinante se pergunta por que não abandonou antes o fardo dos pensamentos poluidores e das emoções venenosas, que alimentam o sofrimento! Segue Clarice: “Pensei que em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade – esta clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me de novo a consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém!”.

            Eu consisto, ele consiste. Nós consistimos, eles consistem... na inconsistência de Ser! Assim, na sofreguidão de simular que existimos, danamos a consistir desbragadamente, em todos os tempos e modos do verbo mentir. Assim todos vão consistindo, enquanto vão se consumindo em preguiça de viver e disposição de jamais acordar do sono eterno. Porque viver como morto é mais fácil, difícil é estar vivo entre os vivos. Para ser morto vivo basta ir levando os dias de barriga, na farra na mamparra, com falas, gestos, simulando estar vivos, mesmo há muito estando mortos, com as almas ressecadas.

            Assim vamos levando a vidinha besta e rampeira, seguindo os trilhos costumeiros do desconcerto em que somos useiros e vezeiros. Não podendo precisar em que consiste a inconsistência do mundo, nos contentamos em existir no chão sem lugar da inexistência operante-ativa. Para existir, e saberem que existimos, temos que ser consistentes e consistidos apenas em não-Ser. Durma-se em um teatro como este!

Brasigóis Felício

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