Ídolos

            1969. Morre Ataulfo Alves.

            Só Deus sabe de onde vem essa paixão humana por ídolos. Afinal, foi Ele quem colocou o tempero paixão na massa humana. Ídolos são todos tolos, assim como tolos somos nós, humanos, que adoramos qualquer coisa deste jeito. Jogador de futebol aqui, escritor ali, cantor lá longe. Mas também adoramos mulheres, homens, astronautas, roupas, penteados, perucas, credos, clima, tez, às vezes vizinhos. E foi assim que passei a admirar aquele vizinho de pele moura, Januário. Ele adorava, idolatrava o crioulo Ataulfo Alves.
            Era casado com uma mulata de cabelos espalhafatosos, voz aveludada, de muito ritmo, gingado no andar. Ele a chamava de Mariazinha, mas seu verdadeiro nome era Lúcia.
            Januário tinha toda a discografia de Ataulfo Alves e seus olhos marejavam só de ouvir aquelas canções em uma grande vitrola que ficava no centro da sala de sua casa repleta de violões, cavaquinhos e atabaques espalhados pela vastidão do lar. Ele nunca tocou instrumento algum, mas adorava ter vários à mostra, à disposição para que os amigos, nos finais de semana, pudessem fazer logo uma roda de samba, uma roda de choro. Sem faltar, jamais, as canções eternas de Ataulfo Alves. Costumava dizer em voz solene, a sós com sua Mariazinha, mirando o horizonte, encarando o brilho das estrelas pintadas no céu escuro da noite:
            — Mulher, ainda teremos um filho e daremos a ele o nome de Ataulfo. Quero ouvi-lo cantar as canções de Ataulfo.
            1969. Ao mesmo tempo em que Ataulfo Alves deixava a nave mãe, músicas e fãs, Januário se dividia entre o suor de Lúcia, as dores do parto, a pressa do obstetra, e a partida do verdadeiro Ataulfo Alves. Morria um Ataulfo e nascia outro, no mesmo instante. O pai, em delírio, tomado por uma mistura estranha de felicidade, agonia e tristeza, cantava sem parar: “Quero morrer numa batucada de bamba / na cadência bonita do samba.” Ao ouvir o primeiro grito do filho, fez silêncio.
            Em casa, não teve dúvidas, pegou o filho no colo, igual a um Rei erguendo o primogênito aos céus para os deuses conhecê-lo e temê-lo, Januário mostrou-o a todos aqueles instrumentos musicais e à discografia colecionada. Com o filho recém-nascido no colo, não fez bilu-bilu, tratou logo de encher a casa e os ouvidos novos do nenê com aquele refrão: “Laranja madura na beira da estrada / Tá bichada Zé ou tem marimbondo no pé.”
            E as músicas de ninar de Ataulfo Alves, o filho de Januário, sempre foram todas aquelas criadas pelo gênio do compositor mineiro. Ainda criança o pai levou a família, em seu cadillac semelhante àquele usado pelo grande músico mineiro até Miraí. Aliás, quanto mais o tempo passava, talvez pela falta, ausência certa do espaço físico do ídolo, Januário é quem na verdade, cada vez, se parecia com o antigo morador de Miraí, aquela cidadezinha da professorinha, lá das Minas Gerais.
            E o pequeno Ataulfo até que gostava de música, mas não tinha intimidade com instrumentos musicais. As aulas de música, logo cedo, para ele pareciam castigos, cárceres que nem a mãe, a mulata assanhada de Januário, conseguia livrar.
            — O menino não leva jeito, amor. Erramos pensando que ele pudesse ter inclinação musical. – A mãe tentava minorar o sofrimento do filho.
            O filho? Ah, sim! O filho, desde a primeira vez que viu o céu, pela noite, com poucas estrelas, quase falou. Sua face desenhou uma pintura tão alegre, angelical, e apontava com as pequenas mãos, juntas e separadas, aquelas luzinhas brilhando, como se tentasse pegá-las, trazê-las para perto de si. De seu coração de criança. Ouvia as músicas, as noitadas de batucada na casa do pai, mas sempre pendurado no parapeito da janela olhando as estrelas.
            Uma professorinha sua descobriu a grande, imensa fascinação por estrelas, planetas, constelações. Astros. Deu-lhe de presente um livro mostrando fotos, explicando o que são buracos negros. Daí para as histórias mitológicas foi um pulo só. Este amor, fascínio, idolatria de astros e céus, carregava como um sonho dentro de si. E o pai, cada vez mais obcecado pela necessidade de ver no filho a realização de todos os seus sonhos ao ídolo já ido.
            Certa vez, o pequeno Ataulfo ouvindo as primeiras canções de sua vida, mergulhou não só em leitura profunda das lições astronômicas, mas também nos desenhos dos mapas do céu que fazia, isto já era lá pelos idos de 1990, quando se aproximou Januário:
            — É, acho que devo reparar meu erro, filho. Errei. Erramos. Sei que vou morrer um dia, levarei saudades de Maria, sua mãe. Mas como diria meu grande favorito da música: “Quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba.” – Passou a mão na cabeça do filho e se retirou. O filho, já iniciando a idade adulta, apenas sorriu atrás dos óculos sedentos por estrelas e planetas.
            Alguns dias mais tarde, ainda em 1990, no meio do verão, o pai deu ao filho um telescópio. A reação de Ataulfo a Januário foi algo tão surpreendente que ele viu no filho uma pessoa totalmente desconhecida. Jamais imaginou a força de um presente diferente dos instrumentos musicais dados durante a vida. Januário deu a Ataulfo bandolins, banjos, gaitas de boca, cuíca, flautas e até um acordeão. A reação foi sempre a mesma, nada de empolgação, satisfação. Mas aquele telescópio parecia a pepita de ouro aos olhos do velho garimpeiro que sempre buscou a pedra preciosa e um dia acabou encontrando. Parecendo músico tocando de ouvido, Ataulfo armou o telescópio no quintal de casa, e apontou aquela grande lente aos confins do céu. Naquela noite não dormiu. Naquela noite, Januário dormiu em silêncio, diferente de todas as noites anteriores de sua vida. Nem mesmo a safadeza de sua Mariazinha foi capaz de alterar o curso da melancolia que lhe abatia.
            Por dias, o vizinho Januário ficou melancólico, triste e introspectivo. Lúcia nem percebeu a ausência das músicas do sambista Ataulfo Alves. Na sexta-feira daquela semana, como sempre, os amigos da roda de samba foram chegando, devagar e aos poucos. Antes de começarem a cantoria, no meio da afinação dos instrumentos, alguém entrega o copo de cerveja na mesinha de centro da roda e informa:
            — O Ataulfo dos Astros, finalmente, ganhou um telescópio. A gente podia dar uma espiada nele.
            — É verdade. Quem sabe a gente vê umas donas da vizinhança saindo do banheiro, trocando de roupa, pelada mesmo – um baixinho danado de assanhado, já no terceiro casamento, lança a idéia repreendida.
            — Pára com isto, Menor, daqui a pouco a Lúcia vem aqui e quero ver tua cara.
            Largaram os instrumentos. Todos, violões, cavacos, pandeiros, bandolins, acomodados na sala fazem silêncio. Os amigos da roda de samba no quintal da casa pedem ao Ataulfo dos Astros, como passou a ser chamado, para mostrar umas coisas legais lá em cima no céu. Esboça um sorriso de astrônomo no rosto e aponta um pontinho brilhante:
            — Visto daqui é menor que a unha do dedo mindinho. Mas olhem. É lindo. Ao redor dele as quatro maiores luas, vistas por Galileu. Lá estão todas. Io, Europa, Ganimedes e Calisto. Parecem que estão em estado de reverência ao maior planeta de nossa via Láctea. Conseguem ver o olho de Júpiter? – Ataulfo dos Astros alcançou seu lugar de idolatria no planeta Terra.
            Lúcia está na cozinha preparando salgadinhos com outras mulheres do grupo da roda de samba. A roda de samba, sem Januário, ao redor do telescópio. Januário, cada vez mais melancólico, sozinho na sala com os instrumentos que nunca soube tocar. Adorava ouvir os sambas, os batuques, ver os requebrados, os gingados das mulheres, lá pelas altas horas da madrugada, quando todos estavam já muito bêbados. Mas naquele momento estava solitário, com o coração pulsando desesperado, infeliz por não ter alcançado o sonho, o grande sonho de sua vida inteira. Distante das outras pessoas, seu olhar pousa na pintura morta da sala. Os olhares dos amigos pousam na lente telescópica. Um dos músicos, o que está com o olho direito na lente e a mão esquerda tampando o outro olho, começa a saltar e gritar freneticamente:
            — Tô vendo, tô vendo, tô vendo. Lá em cima, uma luzinha verde. É uma nave espacial. Ela tá vindo pra cá, gente. Vai nos pegar. É um sinal verde dos céus. Vejam! Vejam! – Pula para trás e dá espaço aos outros que repetem o frenesi: — É mesmo! É um sinal verde. É um sinal verde. Sinal verde!
            Ataulfo dos Astros ri copiosamente. Cai em gargalhadas e antes que pudesse explicar que o sinal verde não se tratava de um disco voador ou sinais do fim do mundo é interrompido por gritos estridentes da voz aveludada de sua mãe.
            O sinal verde dos céus desaparece. A vida de Januário desaparece. Ídolos são sempre assim mesmo, vêm e vão. Não avisam quando chegam e nem quando partem. Deixam vazios. Deixam sonhos. Deixam a vida da gente solitária de lembranças. Deixam tolices que não se desfazem.

Carlos Alberto Francovig Filho

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