Zélia Duncan: a arte exata

Vasculhar o passado é uma atitude comum na arte contemporânea, sobretudo na música. Os resultados são díspares. Muitos falham porque tentam modernizar o que por sua própria natureza é moderno a qualquer tempo. Não compreendem que a essência da arte figura acima das épocas.
Nos últimos anos, algumas cantoras brasileiras voltaram-se ao passado em projetos musicais semelhantes. O mais surpreendente deles é o CD "Eu me Transformo em Outras", de Zélia Duncan. Zélia, que sempre esteve voltada às suas próprias composições, resolveu embrenhar-se na sua memória afetiva, e de lá retirou um punhado de clássicos da música brasileira. Mais do que uma viagem ao passado, este disco traz o passado até nossos tempos superficiais. Canções com 50, 60 anos conseguem respirar inéditas na voz de Zélia. Isto se deve ao fato dela não querer resgatar nada. Nem quis mostrar aos jovens a riqueza musical renegada pela mídia, nem quis soar moderna e ousada e antenada e demais adjetivos típicos dos vazios. Zélia quis cantar. Chamou uns amigos, fez um show, produziu um CD. Não tratou o passado como um monumento a ser respeitado, mas como algo inerente, intrínseco à sua história de vida.
O ineditismo avassalador de todo o disco vem da naturalidade com que ouvimos, por exemplo, "Sábado em Copacabana", de Carlos Guinle e Dorival Caymmi, e logo depois "Capitu", do paulista Luiz Tatit, como se fossem canções gêmeas, sem os longos anos que as separam. A linha do tempo foi destruída nesse trabalho. Temos aqui vinte canções unificadas na voz de Zélia. Seu tom grave reveste-se em delicadezas emotivas. A cantora desfila, canção após canção, uns sentimentos tantos que enchem a casa. Deixam-nos visitados de surpresas. Se "Boca de Siri" arranca-nos risos, pois nos identificamos com os percalços narrados na letra, logo ouvimos "Deusa da Minha Rua" e estamos com a alma em frangalhos. E vamos nos alternando em sentires diversos, que só a arte exata, pois feita de verdade, pode nos proporcionar.
Outro ponto que dignifica este CD é, ao mesmo tempo, o respeito e o esquecimento às gravações originais. São músicas que já foram gravadas por Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Ella Fitzgerald. Como escapar da sombra dessas mulheres geniais? Como estabelecer novos parâmetros para gravações definitivas? Zélia ausentou-se de pretensão de copiá-las. Buscou em suas digitais aquilo que poderia dar em homenagem às divas: ela própria, inteira, cantando o que sabe e o que pode.
O resultado: um projeto musical cristalizado, intenso, em que uma das melhores cantoras do Brasil anuncia: "Eu me transformo em outras" e consegue continuar sendo cada vez mais ela mesma: única e intransferível.

Rubens da Cunha

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