Saudade, tela (1899) do pintor paulista Almeida Júnior

"Saudade", de Almeida Júnior

                   Uma mulher simples, frágil, abatida, de cabelos presos em desalinho

É sempre bom passeio visitar a Pinacoteca. A cada ida, renova-se o meu fascínio pelo quadro “Saudade”, de Almeida Júnior.

Almeida Júnior foi um pintor da segunda metade do século XIX, precursor da temática regionalista e da cultura caipira. Estudou no Rio de Janeiro na Academia Imperial de Belas Artes. D. Pedro II, impressionado com seu trabalho, ofereceu-lhe crédito para estudar em Paris, onde ele morou no bairro dos artistas, o Montmartre. Voltou em 1882, recebendo o título de “Cavaleiro da Ordem da Rosa”. Morreu aos quarenta anos, apunhalado, vítima de um crime passional, em frente a um hotel de Piracicaba. Foi assassinado por um primo, marido traído da bela Maria Laura, pivô da tragédia.

Estou em frente ao não menos dramático quadro “Saudade”. Sinto o choque de emoção e beleza. O que representa essa cena? Uma mulher na vertical, toda vestida de negro, o corpo retorcido, encostado à janela. Uma mulher simples, frágil, abatida, de cabelos presos em desalinho. A boca coberta pelo xale que abafa o soluço, o sufoco. O ambiente é rústico. Um chapéu pendurado no alto lembra uma presença masculina. Uma presença que é, ao mesmo tempo, uma ausência. O que nos faz chorar são as coisas ausentes, mansas, ternas, que moram em nossas nostalgias. Talvez daí tenham brotado essas lágrimas grossas que escorrem pelo rosto da moça morena. Talvez ela seja uma amante inconsolável diante da perda, pois é depois da partida que se chora, que se alcança o mundo do desejo onde não existe o que se abraçar.

O que segura a mulher com a outra mão? Uma fotografia? Uma mensagem? Uma carta? Algo que ela lê; que ela contempla com o coração suspirando; que testa os seus limites; que a leva a outros lugares, outro tempo, outro jeito de ser. Ela lê e sua alma responde; está só e acompanhada; sonha o sonho de outrem; faz seus os significados dos símbolos que ela devora com os olhos; pensa que seu viver não tem mais cura; confere o que está na carta com o que está impresso em suas lembranças; incorpora o conteúdo das frases em seu espírito; preenche com palavras e traços o vazio criado pela saudade. A carta a ilumina e a revela com seu facho de arte.

A ponta do manto negro está imóvel, numa passividade absoluta, num silêncio eterno e sem futuro, num luto sem esperança. O desaparecimento foi definitivo. Ela nunca mais se vestirá de outra cor, só de preto, como as viúvas que viram os navios de velas negras deixando o cais do porto de pedra com seus filhos, noivos e maridos para que o mar pertencesse a Portugal. Sob a saia negra, há uma pomba preta, eros frustrado. O tecido preto reveste seu ventre, a escuridão geradora, onde ainda operam o vermelho do útero, das entranhas e do sangue.

Há um rito de dor no rosto dessa mulher anônima, banhado da luz que passa pelo chapéu, pelos brincos, pela carta e chega até o baú coberto de linho branco ao seu lado. Há angústia, melancolia, opacidade, espessura, peso, nessa travessia de infortúnio.

Toda vez que visito a Pinacoteca, a atração se renova. O sangue português ferve em minhas veias. O que representa “Saudade”? Uma fantasia que se transfigura. Uma constância na adversidade. Uma provação que o negror ceifa, pois a vida é mesmo ilusória.

Raquel Naveira

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