NOSTALGIA

Eu fico um pouco irritado com essa onda de nostalgia que vez por outra volta a atiçar a fantasia das pessoas. É um movimento cíclico que leva a classe média a achar que o passado era melhor do que o presente. Os tempos estão muito difíceis, sim. Há 10 anos, meu salário rendia muito mais do que hoje. Mas daí a achar que o mundo era melhor há 50 ou 60 anos é de uma burrice atroz.

Há um e-mail nostálgico circulando por aí em que a foto de uma senhora idosa serve de fundo para um discurso amargurado sobre as dificuldades dos dias de hoje. O texto valoriza o passado como se nas décadas de 30 ou 40 o mundo fosse um filme água-com-açúcar da Hollywood do esforço de guerra. Como se a violência, a corrupção, o tráfico de drogas e o desrespeito à liberdade e tantas outras patologias sociais fossem problemas atuais.

Ora, Hitler massacrou milhões de judeus há quase 60 anos, quando as janelas não tinham grades e os vizinhos se conheciam pelo nome. Grupos mafiosos andavam elegantemente trajados, apesar de trocarem tiros e tirarem vidas em nome de uma ética sofrível. Meninas chinesas eram obrigadas a enfaixar os pés e deformá-los para que continuassem pequenos. Meninos órfãos eram seduzidos por veneráveis mantenedores de orfanatos e não podiam denunciar os abusos porque não valiam nada.

O banditismo não foi criado pelos Direitos Humanos. Ao contrário, Direitos Humanos foram pactuados mundialmente há cerca de 60 anos porque havia bandidos cruéis e sangüinários travestidos de líderes políticos, religiosos e empresariais. Isso não impediu que os genocídios continuassem a acontecer.

Não havia divórcios. Não só porque eram proibidos ou porque os casamentos fossem perfeitos. As frustrações eram escondidas a todo o custo. Vovô e Vovó prezavam as aparências, apesar da insanidade e da amargura. Pairava no ar uma atmosfera de perfeita harmonia, tão mentirosa e cínica quanto os argumentos usados para que a mulher não trabalhasse fora. Mulher que nesse passado glorioso era obrigada a esconder a gravidez, a menstruação e os desejos.

O passado cor de rosa evocado pelos saudosistas escondia relações familiares hipócritas e não raras vezes violentas. As relações entre pais e filhos eram dificílimas. Havia mais romantismo? Havia, sim. Eram mais comuns os pactos de morte entre casais jovens que tomavam veneno porque os pais não permitiam seus romances. Você lembra de ter lido alguma notícia dessas nos últimos tempos?

Há 50, 60 ou 70 anos morria-se, aliás, por qualquer coisa. A longevidade das populações era muito menor. No Brasil, vivia-se pouco, muito menos do que a média atual. Proporcionalmente ao tamanho da população, morriam mais crianças do que hoje. Morria-se de coqueluche, poliomielite, tétano, tuberculose, varíola e gripe em proporções inseticidas, apenas para citar algumas doenças. Saneamento básico foi luxo de algumas cidades até meados do século XX.

Concordo que os objetos de consumo ganharam importância demais. E que muitos meninos e meninas perderam completamente a noção de respeito. Mas daí a achar que éramos felizes e não sabíamos, é demais. Daqui a pouco reaparece alguém defendendo as ditaduras militares, as torturas e a censura. E teremos saudades do tempo em que tínhamos saudades.

Maurício Cintrão

 

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