Texto Definitivo

           Subia a escada apressado, nem sentia os degraus que, normalmente, pareciam tantos.
           Desde que iniciara seu grande projeto, nada era cansativo ou importante demais. A vida só começava, realmente, quando, atravessando a porta do pequeno apartamento de quarto e sala em que vivia, dirigia-se à máquina de escrever, antes mesmo de comer, repassando os originais para recomeçar  de onde parara.
           O trabalho rotineiro e medíocre do escritório, os resmungos da velha faxineira, que já estava com ele há onze anos, nada disso conseguia atingi-lo.
           Pairava sobre os demais mortais com seu segredo.
           A idéia o perseguia desde bem moço, mas só agora, na faixa dos cinqüenta, tivera o tempo e a coragem para começar a lançá-la no papel.
           Ninguém sabia, esta gente que esbarrava  nele na rua, o garçom que o servia mal-humorado, a moça bonita que o ignorava no escritório, mas todos eram cúmplices.
           Personagens de seu grande romance, um painel da vida humana, a síntese da emoção resguardada, que ele vinha criando há quase um ano.
           Tudo fora preparado como um ritual: o computador que custara mais do que o seu salário, entronizado em uma mesa forte junto à janela. O abajur de pé, o ar condicionado e as cortinas pesadas, para quando precisasse de silêncio e concentração. Até uma secretária eletrônica arranjara com um contrabandista no caso de precisar atender às poucas chamadas que recebia no seu exílio de solteirão.
           Mas hoje, finalmente, estava acabando aquela história monumental. Por causa dela subia afobado os dois lances da escada, o coração palpitando, ansioso por mergulhar no mundo mágico do qual participava mais do que da mesquinha realidade que percorria indiferente.
           Sentia já saudade daqueles com quem convivera tão intensamente e, sentado diante da tela do computador, acariciava sem pressa o teclado, retardando o ato, antegozando o prazer.
           No entanto, horas mais tarde, diante dos papéis impressos, o desânimo se abateu sobre ele: o final parecia incompleto, distante, não estava à altura do que planejara.
           Relendo o livro com cuidado, percebeu que não era só isto. Toda a história parecia falsa, confusa, sem a magia que sentira durante a sua criação. Havia personagens demais, situações exageradas, excessos.
           Cansado, decidiu:
           “Amanhã eu resolvo estes problemas. Corto alguma coisa aqui, suprimo outras ali e estará perfeito.”
           No dia seguinte, no trabalho, não conseguia se concentrar.
           Estava louco para voltar  ao computador e deletar algumas pessoas do seu livro.
           Sentia um prazer perverso em pensar que ia eliminar o rapaz do bar em frente, aquele que o olhava sempre como se estivesse sujo de ovo. E a moça de canelas finas escovando duzentas  vezes o cabelo no escritório, a espera de  alguma  festa que ia começar dali a instantes, para a qual ele nunca seria convidado. E o colega que certamente o ridicularizava com os amigos, depois do trabalho, com o olhar superior de “ deixa comigo”.
           Para ele ninguém deixava nada, mas vingava-se no computador. Lá eles apareciam em sua realidade primeira: supérfluos, no texto e na vida. E seriam apagados, como borrões.
           Assim, sucessivamente, o escritor foi eliminando todo personagem que não era essencial à trama.
           O processo levou alguns anos, até que, finalmente, deu por concluído o livro.
           Antes de procurar uma editora, resolveu descansar alguns dias e depois dar uma última lida bem relaxada, como se fosse o futuro leitor.
           Durante uma semana, dedicou-se apenas a ir do trabalho para casa, onde passava horas esquecido, ouvindo música e arrumando intermináveis prateleiras de livros empoeirados.
           Quando, finalmente, voltou a ler sua obra ficou desapontado: era tediosa, longa demais, repetitiva. Percebeu que poderia dizer a mesma coisa, muito melhor, com  menos palavras. Talvez uma novela fosse o ideal.
           Mas a novela também precisou ser enxugada e virou conto. Um belo conto, denso, profundo, verdadeiro.
           Esta nova elaboração consumiu mais dois anos.
           Descobriu que era muito mais fácil criar aos borbotões do que ser sucinto. Suprimir se tornara um processo extremamente sofisticado, que demandava capacidade de escolha, desprendimento e humildade. Quanta coisa maravilhosa deveria ser jogada fora, quanto personagem apaixonante, todas aquelas  palavras descobertas!  Fora  preciso uma rigidez monástica para não ceder à tentação.
           Quando completou a tarefa, sentindo-se recompensado, adormeceu ali mesmo, em cima do teclado do computador.
           Acordou de madrugada e, na claridade iniciante do dia, satisfeito com o dever cumprido, começou a reler o conto, enfim considerado pronto.
           Outra decepção angustiada.
           Só agora percebia o excesso de palavras, os adjetivos soltos por todo o texto como armadilhas nas quais escorregara muitas vezes. Para que colorir o substantivo? Uma palavra devia ser suficientemente forte para não necessitar da muleta de outra.
           Pacientemente, dedicou-se à tarefa de suprimir os adjetivos, fazendo as substituições necessárias. Mas, cada vez mais, sentia que as palavras estavam em demasia. Irritava-se com pronomes pessoais, conjunções, com os que , ainda que, já que e outros formatos.
           Meses e anos se passaram.
           Aposentado por tempo de serviço, pode dedicar-se, integralmente, à árdua tarefa de eliminar o supérfluo. Quando conseguia substituir um grupo de três, quatro palavras por uma só, ficava feliz o dia inteiro, chegava a colocar CDs  de música e dar-se ao luxo de cantar como um jovem apaixonado. Mas quando, o que era mais comum, empacava naquelas que, teimosamente, recusavam-se a ser substituídas, irritava-se, ficava dias sem comer, emagrecia e andava pelas ruas repetindo longuíssimos versos em francês, como se a verborragia em outra língua o descansasse um pouco de sua obsessão com a concisão.
           Assim, envelheceu sem sentir.
           Já quase não saia de casa, as escadas o cansavam. Os olhos estavam enevoados pelas consultas intermináveis aos dicionários, virtuais ou reais. Pensou em contratar uma secretária, mas já a própria tarefa tornara-se sua vida e ninguém iria executá-la melhor do que ele.
           Criava tabelas no computador, organizava imensas listas de palavras, combinava fonemas, fazia estranhos cálculos matemáticos.
           Todos o julgavam completamente maluco.
           A família, que se resumia a uma irmã distante e a um cunhado formal, preocupava-se com o destino de suas poucas coisas, pois percebia que não duraria muito, perdido num caos de papel amassado e sujeira. A faxineira, que agora era outra, bem mais nova, fora proibida de tocar na sua papelada, limitando-se a passar um pano por cima de tudo e a cozinhar qualquer coisa que ele engolia sem perceber.
           Vivia, no misterioso mundo da língua portuguesa, uma existência paralela da qual ninguém mais conseguiria resgatá-lo.
           Finalmente, quando as forças o abandonaram quase completamente e mal se levantava da cama, já não usava o computador. Limitava-se a rascunhar papéis que iam se tornando cada vez menores.
           Sentia que estava próximo de conseguir e uma emoção intensa começava a se apoderar dele.
           Uma tarde em que a chuva caia monótona na vidraça, um clarão rasgou-lhe a mente e o impacto da revelação jogou-o com força contra o encosto da cama.
           Siderado, apanhou com dificuldade a caneta na mesinha ao lado e escreveu, com a letra trêmula a palavra síntese, aquela que resumia toda a emoção, todo sentimento, toda a verdade encontrada no discurso humano.
           Quando a faxineira o achou morto, no dia seguinte, segurava, na rigidez da mão, um pequeno pedaço de papel.
           Nele estava escrito:
                   Fim

Maria Helena Bandeira

Prêmio Jornalista William Cardoso 2004 - ASES - Associação de Escritores de Bragança Paulista /SP - Classificada para a inclusão na Antologia do Concurso

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