Asas quebradas de beija-flor

Aconteceu numas férias no Pará. Sábado sagrado e quente seria um convite repentino a uma viagem por demais especial. Mas ir aonde? só sei que tomei de uma barraquinha de camping, uma mochila com poucos pertences e pernas até o porto de Icoaraci. No mês de julho, Belém tine de sol. E Icoaraci é um bairro de 160 mil habitantes que, nessa época do ano, destaca-se por ser o porto de saída de centenas de banhistas às regiões de praias ou a balneários da Ilha de Marajó.

Inicialmente, pensava em ir a Algodoal, que é um local aconchegante, de rara beleza, de praias exóticas e, sobretudo, de morenas de um misto de índia com abelha-africana cujas peles parecem ser feitas de carbono derretido em fava-de-leite. O que energiza meu movimento, produz fibrilação involuntária e me faz diluir paredes de desejos. Seria Algodoal, não fosse uma verdadeira turma de amigos que encontrei ainda no porto de embarque: Luciano, Sílvio, Ronaldo, Pedro, Jane, Taíssa, Júlia, Patrícia e Fernanda, entre outros. Segundo Luciano, embora Algodoal apresentasse inúmeras belezas, Salvaterra era ainda muito melhor. E por que discordar?! se uma linda morena me chamava a atenção assim que os encontrei no porto: os cabelos da cor da castanha-do-pará passados do ombro em contraste com os olhos amendoados – gotas de pôr-do-sol –, eram-me motivos auto-sustentáveis do caminho que deveria tomar. E para assinar de vez meu passaporte a Salvaterra, tinha seios próximos aos bicos-de-ave-de-seda, lindos, do tipo furando-não-fura-só-olha-com-água-na-boca que por muito pouco não atravessou aquele vestido branco semitransparente: para os outros, porque eu já o havia atravessado fazia muito.

Tudo anunciava uma tarde inesquecível: seria uma linda fotografia 20 x 20 recortada de emoções que, para sempre, guardaria no plástico mais hermeticamente fechado e perfumado do álbum de minha memória. Mas isso só saberia muito mais tarde.

Nesse clima, embarcamos, embora desconfiado que uma paixão já havia tomado conta de todo meu querer. E isso era muito perigoso, homem apaixonado perde o corrimão da luminosidade na direta proporção que faz do seu amor a herdeira de Vênus. Por conta disso, para se ter uma idéia, acabei esquecendo minha barraquinha de camping no porto. Não era de todo mal, seria mais uma prova de que aquela morena se apossara de meus pensamentos, pelos menos àquela altura. É bom lembrar de que paixão de verão, mesmo com seu quê de beleza, aventura e fantasia, assim como se instala, assim se desmorona. Vem como um beija-flor, veloz e atento; instala-se num vôo estático, paralisante; pinta e borda em sete cores; faz do néctar o vinho de Baco, mas, por motivo vário, bate asas vezes muitas sem explicação.

Sentei-me ao lado de Júlia e Patrícia que já haviam percebido tudo (até o papagaio no ombro do piloto do barco já o sabia). Mas não me intimidei e, em tempo, depois de um gole de espanta-diabo, pedi a amiga Fernanda que me apresentasse Bruna. Este era o nome do pecado que me deixava em estado de fornalha de cobre: coração derretido até a última gota de sangue. Não só a mim, mas também a todos os homens que ali experimentavam quaisquer investidas. Sinceramente, custei a acreditar que os olhares entrelaçados de desejos fossem para mim. Não que me sentisse menor ou algo similar, não, não era isso, sabia apenas que, por mais que me esforçasse, nada do que fizesse, ou viesse a fazer, teria o mesmo valor real de minha assinatura.

Confesso que não esperava aquela receptividade, tínhamos inclusive o mesmo signo, não que isso seja um fator preponderante a meros mortais, mas a ela, sim. Talvez por isso ela dera uma louvável abertura, tanto que conversávamos como se tivéssemos conhecido um ao outro fazia anos (olho agora a janela do tempo e lembro de certos detalhes que só me trazem risos).

Muitos amigos de nossa turma apostavam em namoro sério, embora conhecessem Bruna muito menos. Até Fernanda que a trouxera, conhecia-a da Universidade havia apenas uma semana. Certamente eu já sabia mais de Bruna do que qualquer outro amigo ali presente. Bruna era uma mulher simples, meiga, um recato de voz doce e delicada, presente, marcante. Bruna era atenciosa e inteligente. Uma linda morena de 1,75 de altura, e pernas torneadas de leves pelos dourados que indicavam o caminho certeiro da primeira-fruta-de-adão. Filha única, 26 anos, formanda em Psicologia (formar-se-ia naquele ano). Tão próximos estávamos um do outro que Bruna não se intimidou em contar-me do seu amor pela praia. Em geral gostava de ficar isolada, do jeito que veio ao mundo, principalmente ao cair do sol – desde que não houvesse testemunhas. Naquele dia, um caso de exceção estava aberto: estava intimado por ela a compartilhar o primeiro fim de tarde em Salvaterra. Ao saber disso, procurei esconder minha ansiedade debaixo da língua fria de um copo de cerveja. Juro! vontade não me faltou de, ali mesmo, devorar-lhe os lábios, invadir-lhe a alma, mas isso poderia descolorir a promessa de mágico pôr-do-sol. Aliviei um pouco a tensão oferecendo a ela um copo d'água.

Atracamos em Salvaterra às 16 horas. Luciano, nosso capitão-de-mar-e-guerra, foi logo nos direcionando a casa onde iríamos ficar. Aliás, enorme. Eram 15 compartimentos, além de uma varanda abraça-círio que a circundava por toda extensão. Era a casa de um velho amigo, o Laércio, que logo que chegamos deixou-nos à vontade em verdadeira hospitalidade de vossas majestades.

Todos banhados e arranjados, cada um no seu canto. Uns dormiam, outros jogavam conversa fora. Outros já estavam na praia. Mas, em nenhum momento, havia me esquecido de Bruna, que, aliás, não lhe sabia o paradeiro.

A promessa de mágico pôr-do-sol não fugia de meu pensamento. Além do mais, não se podem perder as belas oportunidades que a vida oferece.

— Fernanda, viste a Bruna?

— Vi, sim, ela saiu caminhando sozinha (usou o indicador e apontou a direção).

Sem demora, fui ao encontro de Bruna. Andei cerca de vinte minutos por quase toda a extensão da praia e nada de Bruna. Confesso que seria capaz de andar a noite toda. No entanto, sentia-me cansado e inconsolável. Foi quando vi um atalho que me levou a um lugar completamente isolado e vazio. Diferente das conhecidas praias brasileiras que, a base de mares de terra, não nos oferece outras trilhas de praias adjacentes, Salvaterra, no Marajó, reserva-nos essas surpresas. Uma praia completamente deserta. As camadas de areia sobrepostas me faziam imaginar a cama onde foram feitos os filhos de Júpiter. O sol cantava crepúsculos vespertinos num tom saudades da aurora. E Bruna estava, ali, sozinha. Mãos sobre a cabeça, espiando o mar feito quem admira o paraíso de Eros. Aproximei-me em passos de leopardo amazônico: ágil e em silêncio. Bruna se doava seminua. À mostra, tudo de um topless insinuante que me fazia supor a maravilhosa taça-da-felicidade servida no jardim de Afrodite. Bruna, no entanto, percebera-me. Juntou-se a uma toalha. Eu apenas ri. Abracei-a. Beijei-a. Porém, aparentemente estranha, Bruna pediu calma. Só na minha cabeça que, ao encontrá-la, todas as portas do céu do amor e da paixão estariam abertas. Menos para Bruna que, antes de qualquer coisa, queria conversar e colocar as cedilhas nos cês. Direito dela. Entendo. Nosso primeiro encontro, e atitudes grosseiras não convinham a quem, em toda viagem, aliás, desde o porto ainda em Icoaraci, deu-me a magia de pensar naquele momento que eu começava a degustar. Além disso, atitudes grosseiras não eram consonantes com seres apaixonados. Isso me aliviava o porquê de não importuná-la. Fato que mais tarde acabei compreendendo...

Estava bem ali, próximo àquela que fez meu coração pular dentro do mar por quase mil vezes enquanto viajava. Nada mais nos atrapalharia. Céu e mar e sol-posto eram os nossos únicos guarda-vidas. Convidei-a para um banho. Uma hidromassagem em mar aberto dá uma sensação de liberdade só usufruída por gaviões-pescadores da América. Ela aceitou. Mas havia algo muito importante que eu ainda não sabia. E só depois desse pingo-no-i, se fosse o caso, desbravaríamos todas as locações de areia e mar que nos espreitavam. Ressaltou.

Ela, em passos de borboleta saindo da crisálida, veio até mim e, tocando minhas mãos, com um olhar sério de leoa fez-me sentar junto dela. Naquele momento, percebi um certo ar de aflição. Fiz tudo errado, não foi? perguntou meu pensamento tragado em desesperança numa fração de segundo. Bruna não fez cerimônia. Tomou de uma bolsa de onde tirou um álbum de fotografias. Em silêncio, olhou-me com um ar triste de uirapuru-de-costa-azul estampado no rosto e acrescentou: "Se me quiser, vai ser assim".

Um álbum de fotografias, ao mesmo tempo que pode ser um mosaico de belas imagens, pode também, por ser histórico, um quebra-cabeças todo montado para satisfazer quaisquer dúvidas, independente de onde venham. Seja, a essa altura, do autor ou do próprio leitor. E assim o fora. As imagens ali expostas de Bruna, mais que surpreendentes, mais que inacreditáveis, eram tão-só reveladoras. Nos mais variados ângulos, Bruna e suas poses instalavam em meus lábios, página após página, um absoluto e total vazio. Sim, de decepção. Mas não pense o leitor que se trata de preconceito. De nem um matiz que seja. Preconceito é uma arte deplorável que só se justifica pela ação da ignorância, mas sempre é ação do desrespeito à pessoa humana. Portanto, inconcebível. Mas a linha que me costurava naquele momento, foto após foto, não era desse mal; e, sim, outra. Era a linha que me levava (melhor, me levaria) à primeira-fruta-de-adão, à primeira fruta que todo púbere ou adolescente sonha em apossar-se, cuja concha conserva os homens por nove meses e multiplica-os segundo a ordem divina; mas, agora, subitamente, em vez da tal fruta, bem no seu lugar, acredite, um dedo dos diabos apontava para o Norte magnético.

Sou o que sobra além de mim. O sonho beijos-de-mel-com-sucos-de-pôr-do-sol era, inacreditavelmente, naquela exata hora, asas quebradas de beija-flor.

Merivaldo Pinheiro

2° lugar no Concurso Fórum Maracajá da Ilha do Governador, categoria contos, 2007, RJ

 


 

Menino do pára-brisa

Juro. Vontade nenhuma me cobria o espírito já naufragado, já desmaiado, de naquela tarde transpor mais cedo o muro que me detinha oito horas diárias. Não naquela segunda, depois de atravessar noite adentro o mar do funk domingueiro quando nem a lua agüentava-se de sono. Muitas vezes me vi nessa situação, embora sempre dissesse que essa, exatamente essa, seria a última. Sair, sim. Porém, a noite de domingo seria sagrada para tão-somente belos passeios, e jamais me estenderia até à madrugada. Falsa promessa. Pois não me faltavam os amigos dos bons que, sem maior esforço, logo me convenciam a um arrasta-pé até às sete da manhã. De lá mesmo seguia para o trabalho. No entanto, o costume me fez desaprender o segredo que atrasa o sono até a chegada da noite e, naquele dia, enfim, exausto, resolvi ganhar a rua.

Uma segunda típica de dezembro. As pegadas dos transeuntes e os invisíveis rastros dos carros demonstravam a azáfama nos corações humanos, mas também alguma alegria se podia dali vislumbrar. O sol carioca estava incomum – cabisbaixo e envergonhado – denunciando a possibilidade de chuva que logo, logo cobriria a alma inteira da cidade. E se viesse a acontecer, seria de boa bênção se, pelo menos antes das três, eu já estivesse a postos em meu travesseiro me deliciando com os cânticos dos pingos nas telhas febris: guardiões do sono que naquele momento me excitavam o desejo de cama.

A Estrada do Galeão, uma das principais avenidas da Ilha do Governador, era movimento retilíneo da primeira lei de Newton e cortava meu pensamento em uma perpendicular. Não me pergunte pelos belos e pomposos elevados quais os do centro da cidade; não os havia. Para o controle do tráfego, um sinal de três tempos e de três cores lhe parecia suficiente. Suficiente também para mim. No sinal, cinco ou seis meninos munidos de sabão, esponja e flanela se revezavam nos pára-brisas dos carros – enquanto o vermelho do sinal assumia a muralha invisível que condutor inteligente não se arriscava em atravessar sob pena de multa ou, pior, incontrolável acidente.

Meninos malabaristas nos faróis em ruas brasileiras são, hoje, evento comum. Do Oiapoque ao Chuí, estão eles sempre movidos pelo estado de necessidade ou paralisados pelo estado de abandono. Seja onde for, a aparência maltrapilha e os pés no chão nos cruzamentos viários são indicadores diretos do pré-conceito de que estamos diante de meninos excluídos. E poderia ser de outro modo? Talvez.

Do ponto de ônibus, cerca de dez metros não mais, via-os com nitidez. Reconto um a um. O mais novo não era menos de oito. O mais velho não excedia treze. Cinco deles eram das condições já citadas; e apenas um, um e somente um, por certo o mais velho, com trajes aparentemente novos e, por que não dizer, modernos, usava tênis, short, camisa e chapéu brancos que lhe davam um ar de criatura tratada a pão-de-ló, e, se fôssemos um pouquinho mais além, admitiríamos um quê de honestidade. E quanto mais observava as atitudes daquele menino diante dos pára-brisas, mais meu espírito alimentava-se de inquietações. O fato era digno de crônica. O balançar de cabeça dizendo obrigado aos motoristas demonstrava a educação que o diferenciava dos demais. Não parecia um menino acostumado às intempéries do dia-a-dia. Isso me intrigava com intensa alma de Sherlock Holmes. Textura que me distanciava do bom senso, e, carro após carro, me intrigava a memória em conjecturas sem respostas plausíveis ou convincentes. No entanto, era inquestionável: aquele garoto era a luta em busca de moedas preciosas. Preciosas porque, em geral, esses meninos são também mãos-de-ajuda no orçamento familiar. E não me questione acerca de meu sono de peixe-boi de água doce – dava lugar a uma curiosidade em grosso calibre de desconfiança. Instalava-se em minha alma, e não permitia derrotar-me por satisfeito.

Seria aquele menino realmente um não-escolar? Por que não um representante de cobradores de impostos pela aguda necessidade de sobrevivência? Ou seria ele um propagandista envolto naquele disfarce? Talvez a vestimenta em alto padrão tivesse sido fruto de algum cliente que, tomado pela surpresa, pelo fino trato com os pára-brisas, lhe dera de presente como graça ou agradecimento. Quem sabe, pelo clima de Natal, fora-lhe doado o vestir-se por algum abastado orfanato de Maria do condomínio Jesus de Nazareth, e resolveu experimentar a roupa nova o quanto antes por acreditar atrair mais clientes. Certamente, uma aposta desconexa. Pois, olhando-o melhor, vejo o fazer-se das moedas recebidas, em vez de guardá-las no bolso, sem cerimônia, repassa às mãos, acredito, do mais novo entre eles. Seria o próprio irmão? improvável, tal a diferença de cor. O mais novo tinha o belo e o indelével tom da graúna. Talvez lhe fosse o amigo de confiança ou fizesse parte de um trato que não me competia qualquer investigação. Se ao final do trabalho havia o acerto de contas, isso também não me parecia louvável querer questionar.

A chuva estava àquela altura estava mais ameaçadora. Trinta minutos dissolveram o ponteiro de meu pulso, e meu ônibus nem por Código Morse. Na parada, além de mim, mais de dez pessoas também respiravam, ansiosas, o desejo de encontrar-se com seus lares. Talvez por isso meu fabricador de crônica na concorrência das ruas, sob o triolhar do semáforo, não fosse para elas um acrobata do cirque du soleil . Nem que o fosse, a impressão é que, não me custa dizer, o humano de nossos olhos, em geral, por motivo vário, tem apontado para os próprios umbigos, e raro é alcançar umbigo outrem. Raro é aportamos do outro lado do rio. Raro é importamo-nos com a margem passando diante de nós. Sinto-me vazio ao detectar essa procura também vazia. Ainda mais ao volver o olhar aos meninos em tom suficiente de caráter acrobático. Embora seja válida a acrobacia da sobrevivência, reservo-me a isso com decepção. Meus olhos, nesse instante, são leves lagos de indignação. Por hora, basta-me!

Nada de ônibus. Pelo adiantado da hora, resolvi com prudência pegar um táxi. Além de chegar cedo, aproveitaria para entrevistar o dono dos pára-brisas que nos deu boas dezenas de linhas. Pelo menos, perguntar-lhe o nome. Não me pensaria intrometido. Separei-lhe boas moedas. O sinal agora é vermelho e o motorista, claro, pára. Exato um minuto. Um trinta-e-oito vem com o grito veloz: "Sai! sai! sai!". Era um jovem de no máximo vinte anos. Rendera o motorista. Surgira com tal ímpeto sabe apenas Deus de onde. Minha reação de espanto estava absolutamente destituída de qualquer investida. O jovem não estava só. Havia ali um comparsa que abre a porta do táxi e, com desenvoltura de um gentleman, pede que eu saia em silêncio... era o menino do pára-brisa.

Dinheiro não me fora levado. De mim, levaram a esperança. E os pingos da chuva eram, sob um olhar verde de pasmo de sinal mais pasmo ainda, na contramão, quase batendo três horas, um cântico de inquietações sobre meus ombros.

Merivaldo Pinheiro

Menção Especial no Concurso Fórum Maracajá da Ilha do Governador, categoria crônicas, 2007, RJ

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