A azeitona

Num dos últimos encontros, ele, após reclamar da réstia que o garfo lhe fazia sobre os olhos, declarou:

— Tenho mulher e filhos.

E ela, perplexa:

— Não acredito!

— Te juro de pé junto - cerziu os dedos e duas vezes os beijou – é a mais pura verdade!

— Casado?

Ele, sem hesitar, ciscando na toalha os grãos de arroz, prosseguiu:

— Mulher e filhos. Dois filhos...

— E onde tá a aliança que não tô vendo na mão?

Confidenciou:

— Dentro do bolso. Às vezes nem lembro de tirar. Vai do tempo.

Dirce, sem desviar-lhe atenções, não acreditava:

— Está me fazendo de palhaça, Carlinho?

— Não, claro que não, Dir...

De imediato, a mulher se levantou:

— Homem casado? – e ao limpar os lábios com o guardanapo, pegou a bolsa, concluindo – Tô é fora, muito fora!

Porém, mais que depressa, Carlinhos a agarrou pela barra da saia:

— Ei, ei, ei... Por que a pressa? Senta só um pouquinho. Deixa explicar tudo...

Conheceram-se há uns dois, três meses, numa corrida de táxi. Ela, uma moça de uns vinte e tantos anos, costureira de um pólo de confecções. Ao passo que ele, motorista autônomo, na idade do lobo, famoso por sua sincera espontaneidade, acrescentava a distinta experiência um outro genuíno predicado: a sinusite. Doente certificado, tinha em seus bolsos uma sacola de remédios, uma pequena farmácia. E além disso, costumava dizer, meio sério, meio brincando: “Qualquer dia hei de visitar São Pedro”. Quanto a Dirce, esbanjava saúde. Em sua notória robustez, acreditara cegamente nessa paixão instantânea e necessária que zelava por Carlinhos como se fosse um paxá. E agora, num restaurante, ele, encerrando a conta, dizia-lhe aquilo, repentinamente, sem o mínimo pudor.

— Olha Carlinho, posso ter crescido sozinha, mas sou moça de respeito. – ela, num frágil desprendimento, protegia-se – Deus me livre, homem casado!

Então, numa tristeza convulsa, escorregando a azeitona pelo prato, Carlinhos, emocionado e murmurando, começou:

— Coração, você fala como se eu fosse um monstro, como se fosse pecado... Pô, dá um desconto! Amo você, somente você!

Dirce, por entre lágrimas, reconheceu:

— Carlinho, também te amo, coração! Mas agora imagina se minha tia, se tua esposa descobre. Imagina!

E, em uma última súplica, ele:

— Ninguém vai ficar sabendo Dir. A gente deixa como tá. Não tá bom? Claro que tá. Pra que mexer? Time que tá ganhando não se mexe!

Porém, Dirce, ao contar as moedas, levantava-se em definitivo. Foi ela quem pagou a conta, quem abotoou a camisa de Carlinhos e, logo a seguir, rematou:

— Por favor, não me procure mais!

Dias depois, ele a aguardava, de rosto inchado e dolorido, tomando um analgésico, numa esquina antes de casa:

— Sem você ó como é que eu fico! Olha só!

Dirce, em seu aspecto imaginativo, o amava. Testemunhá-lo naquela condição, acometido pela sinusite, o rosto suando, foi para ela de um enternecimento atroz e avassalador. Dominada pela ingenuidade, com a impressão profunda e de olhos arregalados, pôs-se, rapidamente, a acalentá-lo:

— Meu Deus do céu, homem! Por que veio até aqui? Não sabe que qualquer friagem é um veneno?

Carlinhos dramatizando, coçou a nuca, continuou:

— Só assim mesmo pra você me ouvir...

— Ara Carlinho, faça-me o favor!

E o calamitoso:

— Deixa eu pegar o papeligiênico no carro, só um instantinho.

Passado as mesuras iniciais, entraram, por fim, em uma sorveteria, abraçados e falando de banalidades. Ela, preocupada com o estado do amante, decretava:

— Quando chegar em casa vai fazer uma compressa de água quente nesse rosto!

— Tudo bem...

— E vê se fica uns dias de molho, nem pro trabalho o senhor vai. Entendido?

E ele, com um sorriso sórdido estampado na face:

— Tá bom, Dir, tudo o que você quiser!

No auge do dia prazeroso, Carlinhos, pouco a pouco, esmiuçava seu matrimônio. Dizia que a esposa não prestava, que, inclusive as qualidades, o aborreciam. Os filhos, a sogra e, ainda por cima, uma cunhada, tinham a maior displicência em dizer que ele só era bom com dinheiro no bolso:

— Você, Dir, acha que tenho cara de Banco Central? Não ganho muito, tem noite que faço mais de quinze corrida pra tirar o caraminguá e comprar o leite de bem cedinho. Porque senão... Ninguém pensa no que eu tô sentindo?

Dirce ficara atônita:

— Sério memo Carlinho? Que dureza!

Com o alívio, Carlinhos prosseguiu:

— Se arrependimento matasse eu já taria morto há muito tempo! Você acha que tão ligando pra mim? Coisa nenhuma!

— Não fazia a mínima noção do que você passava em casa...

—Passava, não! Passo!

E ao se despedirem, Carlinhos, em seu esgar de apaixonado, disse:

— Agora posso ir embora sossegado, sem peso na consciência...

Dirce, de pronto, parou e com uma galvânica ousadia, o surpreendeu:

— E meu beijo?

O pobre coitado; confuso diante da circunstância roçou-lhe na bochecha a boca molhada, num pesar esguio, como se estivesse pronto a sair da vida da moça. Dirce, porém, outra vez o encantou:

— No rosto?

— Onde mais seria?

— Aqui, ó!

E ela, inquieta pela sísmica paixão, entregou-lhe os lábios, freneticamente:

— Com calma, Dir. Tô todo dolorido...

Apesar dos pesares, continuaram a se ver, às escondidas. Ocorrera tudo de uma simples estranheza. Durante algum tempo puderam omitir seu sôfrego amor. Encontravam-se em horários insuspeitos, quase sempre antes do pôr do sol ou após o expediente de Carlinhos. Dirce, inibida, pasmava para a jocosa e afável naturalidade do amante. Sentia-se cada vez mais forte, mais segura, a ponto de agraciá-lo sem ignorar as mazelas conjugais que lhes eram confidenciadas. Tanto que o próprio Carlinhos, depois do beijo inicial, abria o coração e lhe revelava extraordinários acontecimentos familiares. Criava em torno da menina a aura de cumplicidade, de refúgio. Uma solista daquele sofrimento cáustico, iracundo e malevolente:

— Sem você, não existe vida!

Carlinhos, de fato, não vivia sem Dirce, sonhava com ela, estivesse ou não acordado. Com a pertinácia de um exorcizado, telefonava, mandava recados, deixava-na passear de graça, fiado. Por um curto período, viveu para esse entusiasmo adolescente, sem escrúpulos algum. Até mesmo a sinusite quinzenal teria, por sua vez, dado sossego. Nas mãos de Dirce – sejam elas espremendo os cravos de suas costas, sejam elas tirando os excessos da sobrancelha – o desumanizado Carlinhos convencia-se do arrebatamento. E como, no futuro, haveriam de instituir a diária rotina da relação, Dirce, que inspirava os mais profundos anseios, começou a sentir uma série de mudanças e sintomas desagradáveis:

— E se eu tiver grávida?

Carlinhos quis duvidar:

— Sério? Nem brinca com isso!

Poderia ter sido menos incisivo em sua resposta. Porém a natural desenvoltura de compaixão não era sua virtude.

— Que descaso, Carlinho!

E realmente, decorridas quatro semanas, a certeza: Dirce estava grávida. De início, Carlinhos fez um esforço tremendo para não compreender. Com uma vasta antecedência, puxou o lenço do bolso, estancando a coriza, proferiu o discurso:

— Bem agora que eu pensava trocar de carro!

Espantada diante do desacato, ela balbuciou:

— Sinceramente não tô acreditando... – os brincos, ao sopro dos ventos, chacoalhavam num itinerante vai e vêm. Antes de complementar:

— Eu, mãe do seu filho, e você vem me dizer isso? – deu um intervalo – Vê se tem cabimento!

Ele, prenunciando os sintomas da sinusite, respondeu:

— Olha só, olha só como é que eu tô! Olha bem! Vê se você acha que tem cabimento o que acabei de ouvir? Acha que é bom ser pai todo dia? Acha?

Carlinhos, em seu melindre, nessa ocasião não se submeteu aos beijos. Encerrara o passeio com um “Fica com Deus...”, sem qualquer afago. Mais cedo ou mais tarde, o idílio, por motivo de força maior, teria de ser desfeito. Dirce, muito sensível e cautelosa, no entanto, havia notado as sutis diferenças de comportamento. Para ela, a ausência de Carlinhos, que em certo momento irrompeu na sua vida, era algo sem precedentes. Essa paixão impetuosa, acabara.

E no decorrer de vários dias, a mãe expatriada, numa unânime desilusão, aguardou um telefonema, uma palavra, ou que o amante estivesse, como de costume, em sua praça. Nada. Absolutamente nada. Dirce, transtornada, passava horas de bruços na penteadeira, estiolando, dentro do quarto, sua débil candura. Saia apenas para o trabalho. Da casa para o trabalho e do trabalho para casa. Após uma longa espera, e quase por acaso, descobriria, por intermédio de uma colega, parente da esposa de Carlinhos, seu telefone residencial. Na primeira oportunidade não falou nada, desligou antes ainda de chamar. Na segunda, a filha do amante atendera, porém ela, novamente, recuou. Numa última tentativa, aconteceu que o próprio Carlinhos a atendesse:

— É o Carlinho?

Na deflagrada histeria:

— Carlinho, sou eu, Dir! Fala alguma coisa!

Mas Carlinhos resolveu encurtar o diálogo:

— O Carlinho morreu! Vestiu o paletó de madeira!

Em seguida desligou. A partir desse instante, a moça, coitada, passou a perceber, definitivamente, que Carlinhos a evitaria. Numa irremediável insegurança, e enquanto pôde esconder seu estado, decidiu, por bem, relatar a tia o seu caráter de gestante:

— Não quero tia, juro que não quero que meu filho cresça sem pai – aos soluços, repetia – mato ele! Acabo com essa vida!

A tia pousou a mão na sua cabeça:

— Vamos falar com o Dr. Beltrano, amanhã. Não se preocupe...

E foi por pura coincidência que encontrara a casa de Carlinhos. No dia seguinte, após a consulta, Dirce, com uma aparência fantasmagórica, vagava por ruas e avenidas, quando, de longe, avistou o amante saindo para o trabalho. Aguardou algum tempo e ao vê-lo entrando no carro, sentiu-se segura para que, insistente, resolvesse bater à porta. Parecia-lhe inverossímil tamanha conspiração do destino. Uma mulher, não muito velha, panturra, de trejeitos cordiais, a recebeu. Chamava-se Noêmia. E rápido solidarizou com a circunstância:

— Moça, você tá passando bem?

Dirce, pálida, desfaleceu nos primeiros degraus:

— Água, por favor!

E Noêmia:

— Crianças! Crianças! Meu Pai-Amado, a moça tá passando mal!

Não demoraram muito até que a colocassem num sofá. Noêmia correu para a cozinha buscar um pouco de vinagre. À medida que Dirce inalava o conteúdo do vasilhame, pouco a pouco, recobrava a consciência.

— Meu marido já, já ele chega! Só um instantinho e assim que surgir poraquela porta vou pedir pra que ele te leve no Pronto-Socorro! É taxista, mas não vai te cobrar nada, não se preocupe.

Atinada, Dirce, lentamente, começou a ligar os fatos. Apreciava o domicilio de Carlinhos com uma alheia peculiaridade, contida em um ódio indiscriminado, em um ódio frio, ao mesmo tempo lúdico e sarcástico. A visão infame e caluniosa que o amante passara da esposa, era discrepante da realidade. Noêmia tinha vocação maternal e matrimonial. Naquela casa não havia resquícios de um único conflito. Fotografias espalhadas pela cristaleira conotavam o contrário.

— Acho que chegou minha hora...

A traída, num sobressalto, a advertiu

— Que isso! Você fica pro almoço. Onde já se viu? Há pouco tava aí caindo igual vara verde! Tem que comer! Não acredito que vai embora sem comer minha macarronada! Quer cair de novo na rua? Senta lá na mesa e se serve...

E Dirce:

— Mas só um pouquinho, tô sem fome.

Sentou-se a mesa, junto das crianças. Meia hora mais tarde, chegara Carlinhos com uma sacola e um refrigerante:

— Olha só o que eu trouxe pra vocês! – mostrando uma caixa de bombons – Mas só depois do almoço.

Ao se deparar com a efígie de Dirce, a antiga amante, sentada em sua sala de estar, fossilizou. Nenhuma palavra saiu, travara por completo. Parecia que estava vendo uma revelação apocalíptica. Entretanto, num grito estridente e insofismável, Noêmia, da cozinha, o chamou, acordando daquele deslumbramento hipnótico:

— Vem almoçar, bem. É macarronada com carne moída, azeitona e batatinha!

Ele, aterrorizado, respondeu:

— Estou sem fome, coração!

E a esposa:

— Fiz com tanto gosto, bem – vencendo na persistência – vai me fazer essa desfeita?

O pobre desgraçado não teve como negar. Puxou a cadeira, colocou duas porções no prato e mastigando como um possesso, ouviu, lúcido, o instante em que a esposa perguntou:

— Mas o teu nome mesmo, qualé?

A convidada, a princípio, pensou num pseudônimo, num nome fictício, porém com uma altiva sinceridade, respondeu:

— Dirce...

Noêmia lhe indagou, novamente:

— Minha querida e como é que você me chega nesse estado, magrinha, branca igual a um defunto?

De maneira mortal, Dirce fez um gesto para apanhar a bolsa, então, ponderando suas próprias palavras, replicou:

— Acabo de fazer um aborto...

Todos, sem exceções, pasmaram diante da confissão da convalescente. Assim que escutou, com incontestável ressonância, o que Dirce dizia, Carlinhos, súbito, começa a tossir. Essa sádica agonia, em questão de segundos, tornou-se encolerizada. O homem não tinha mais onde se apoiar. Batia nas costas, tossia, apertava contra a palma das mãos os talheres. Noêmia desesperada, gritava:

— Sacuda esse homem, pelo amor dos meus filhos – e lhe dava murros desenfreados – sacuda o meu marido que ele tá morrendo! Sacuda!

Minutos mais tarde, roxo e com a cara aterrada no prato de comida, Carlinhos morrera, engasgado, pelo caroço da azeitona. Dirce que assistiu impassível, de camarote, o episódio, abriu a bolsa, olhou em direção a viúva que chorava copiosamente e surrupiando um antigo retrato, murmurou na orelha do finado:

— Canalha...

Em seguida, beijou-lhe a face. Repetindo:

— Canalha...

E como um fantasma, retirou-se, sem que ninguém percebesse, da mesma forma que entrou: Pela porta da frente.

Diego Ramires Bittencourt

3° lugar no Concurso Municial de Contos de Ponta Grossa, Categoria Contos, 2006, Ponta Grossa/PR

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