Quintais antigos, aprendizados e atitudes

Às vezes é necessário chover, para, na solidão de uma casa, nos aprisionarmos em casulo de íntimos pensamentos, para que antigas e enraizadas emoções venham nos acariciar, ou nos inquietar. Despertar-nos para as distâncias misteriosas que se anunciam além das janelas e horizontes. Chuvas, lágrimas do tempo sugadas pelas terras do chão das planícies e das montanhas, repelidas pelas vidraças dos refúgios dos homens e pela dureza das ruas asfaltadas, cativam antigos olhares e odores existenciais, mesclam alegrias e tristezas, nos oferecem, na clausura inesperada desses momentos, o mergulho para novos e possíveis caminhos de felicidade. Às vezes, é necessário chover, para que as crianças esqueçam o quintal dos seus folguedos e venham, com seus brinquedos, se abrigar nas varandas das suas casas.

Crianças nos quintais? Varandas das suas casa? Desconfio e receio, aí, que estas imagens se refiram a um tempo que há muito se recolheu, que toda essa recordação, muito pessoal, se desfaça na surpreendente revelação da habilidade dos pequeninos de hoje, convidados, no aconchego dos seus apartamentos, a experimentar e adotar muitíssimos toques eletrônicos, leves e rápidas pressões de teclados e botões, que os atraem permanentemente para o êxtase irresistível da contemplação e da manobra de múltiplas, coloridas e sonoras imagens, anestesiando, sufocando e adiando-lhes reflexões sobre desafios existenciais, perspectivas de vida mais próximas dos seus prazeres, vocações e ideais. E, quanto a nós, já penteando ou disfarçando cabelos brancos, condenados estamos a nos adaptar aos sabores e dissabores dos novos tempos.

Quintais. Quintais cachoeirenses de Cachoeiro de Itapemirim, 1943 a 1950, cercas de madeira, por sobre as quais, ou através dos espaços das ripas, os vizinhos interpenetravam opiniões e murmúrios. Chãos de terra e areia, lama, nos morros ou à beira-rio, onde cachorros e gatos, galinhas, patos, porcos atrapalhavam nossas caminhadas. A descoberta e a curiosidade sobre as manias de viver dos menores seres: aranhas, baratas, formigas, tanajuras, minhocas, lagartas, besouros, joaninhas, louva-deuses, cigarras, abelhas, vaga-lumes, insetos diversos, permanentes ou sazonais; os morcegos, as aves a bicar o que lhes interessava...desde as gingas dos urubus no terreno até aqueles, quase domésticos, de olho nos restos de comida ou nas árvores frutíferas. A mangueira, que nos oferecia os fortes caules para o desafio e o prazer de neles subir, e também nela pendurar e amarrar as cordas do nosso improvisado balanço; a goiabeira, o pé de cajá-manga, cujos frutos nunca nos permitiram definir exatamente o seu gosto. A bananeira, a caramboleira, os pés de fruta-pão e de abiu. O prazer de escavar, plantar, acompanhar e colher os ramos de certos grãos de crescimento rápido, como o milho, o feijão (antes que as galinhas os descobrissem). Flores, também. As pequenas e verdes folhagens do arroz, cultivado na água e algodão, em velhas xícaras ou potes (só para enfeitar a casa). À beira-rio, fora dos tempos das enchentes, saltos sobre pedras que nos levavam à pequena ilha do Itapemirim, o cerco, em “ocas”, aos pequenos peixes e camarões, os banhos em águas rasas. Brincadeiras únicas e pessoais, as caixas de sapato ou mesmo de fósforo, ou abandonadas latas de óleo, imaginadas como veículos, arrastadas para lá e para cá; o cabo da abandonada vassoura sendo viva cópia do ligeiro cavalo do roceiro que passava na rua ou do mocinho americano do filme do cine Central ou do Santo Antonio; brincadeiras coletivas, com o(a)s amiguinho(as), como correrias de um pique, ou não, pular cordas (“chicote queimado”), mãos e pés desajeitados no controle ou troca da posse de uma bola,, jogos das bolas de gude, de “porco” nos tempos chuvosos (cerco e aprisionamento de caçapas ou buracos, cada um pertencente aos dois jogadores, através de linhas criadas por riscos feitos por pré-determinados números de vezes, para cada um, de fincadas de um ferro contra o chão úmido),o jogo da carniça, do roda pião, o do bilboquê, das amarelinhas, “brigas” de mocinho e bandido, cheios de onomatopéias; disputas de jogos “didáticos”, ilustrações coloridas sobre papelão, com ajuda de dados; imitações de cerimônias religiosas, teatrinhos... Nossos pequenos cérebros assumiam comportamentos dentro das possibilidades imaginativas do ambiente . Fomos realmente crianças quando era a época de sermos crianças. Felizes éramos, sem o saber, nas “artes” e brincadeiras. Éramos simplesmente assim, naqueles tempos assim...Tudo isto com os livres e vulneráveis pés descalços, grande desculpa dos adultos para nos impingirem os intragáveis remédios-lombrigueiros da época.

Parcialmente, aqui retifico: às vezes, nem é necessário chover, para que um homem, em lúcidos momentos, hoje, agora, já, em meio à multiplicidade de opções de vida, também se imponha corajosamente, provando que é mais forte que a mensagem da máquina, que a missão maior dele consiste em fazer, dentro do possível, o que melhor gosta de fazer e, não, a do papel a que é induzido pelas máscaras-mídias do teatro da humanidade.

Enfim, com emoção e inteligência, que reconte histórias dos queridos quintais para seus filhos e netos. Incrédulos, prisioneiros de “paradisíacos” condomínios, eles poderão até rir, porque elas serão negações das suas falsas e mecanizadas infâncias. Pelo menos, lance esta semente. Pode ser mesmo que, em determinado momento das suas vidas, talvez num solitário dia, de chuva ou não, eles apreendam e valorizem a mensagem desses espaços tão simples e primeiros que tanto alegraram os corações dos seus pais e avós.

Quintais assim, confesso, foram também cartões de apresentação do meu aprendizado inicial do amor à natureza, com posterior vocação para caminhadas pelas matas brasileiras. Cuidemos, pois, delas e de nós. Reparem nas atuais e constantes irritações no humor dos mares e dos continentes... eis a Mãe-Terra, nosso quintal universal, se revelando cansada de nós.

Milton Ximenes Lima

Menção Honrosa no Concurso Rubem Braga de Crônicas 2009 da Academia Cachoeirense de Letras, Cachoeiro de Itapemirim/ES

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