Entre a vida e a morte

Era avesso às coisas fáceis, longe de ser masoquista, rapaz que dava valor às conquistas. A primeira letra escrita, o primeiro tombo de bicicleta, o primeiro xingamento na rua, que resultou no primeiro sangramento de nariz, e a mais especial de todas: o primeiro beijo, muita saliva e pouca técnica, um sabor que jamais esqueceu, a garota tinha acabado de chupar Halls de hortelã.

A vida era algo que não bem compreendia, embora procurasse viver da melhor maneira possível. Mesmo depois de ter lido Nietzsche, já que se achava mais feliz que as vacas e seguia tranqüilo com a missão de ser humano. Certo dia meditou sobre as formigas, trabalhadoras por excelência, nascem assim, morrem assim. “Alguém já viu uma formiga dormindo?” Pois é, ele adora dormir, considera um ensaio da morte com nuances oníricas. A efemeridade não repercutia em si, brincava, e numa elucubração oblíqua dizia que os orgasmos eram apertos de mão dados em Deus. O sexo, a panacéia delirante que nos deixa mais e mais vivos, fazia com que apelasse até mesmo para sua versão “genérica”, vez em quando. A fantasia costuma operar milagres. E dá-lhe bom-humor, sua condição sine qua non para a qualidade do dia-a-dia, o que reafirmava a crença de que erraram os que decretaram a morte do riso depois de Auschwitz. E assim sorria, pelo menos uma vez por dia, como aconselhou mestre Chaplin.

O impressionante disso tudo é que numa noite de intensa alegria, regada a cerveja, ele se tocou da banalidade da morte. A meio copo da famosa saideira estava ele a sorrir despreocupado, celebrando esse viver de angústias humanas, graças a Deus ou sei lá a quem não tinha nascido vaca, e essa existência de diversões que as formigas desconheciam. Quando de repente, não mais que de repente, seus ouvidos, os primeiros sentidos a perceberem a quebra da paz caótica, ouviram o estrondo. Os olhos perceberam o clarão. Suas costas, as mesmas que momentos antes do disparo tinham sido tocadas pelo anjo vingador, que de arma em punho fez sua justiça, desabaram ao chão após o segundo disparo num instantâneo reflexo de fugir, isso já fora do bar. O morto sem rosto e o assassino sem nome.

Muito avesso às coisas fáceis, chorou horas depois, dias depois ainda. E chegou a achar desnecessário o estudo da filosofia. Fosse uma vaca não saberia o que se passou, fosse formiga estaria trabalhando àquela hora e não se divertindo, mesmo em se tratando de uma sexta-feira à noite no Rio de Janeiro, as formigas cariocas são tão trabalhadeiras quanto às outras e dispensam até o happy hour. A vida é conquista, árdua por sinal, e acabar assim significava que ser humano não é uma missão tão digna. In vino veritas (*), diziam os romanos, mas a grande lição que tirou desse episódio é que não adianta saber a verdade, o corte na carne é sempre mais profundo quando se está sóbrio. Não pretendia tornar-se um ébrio como bem cantava “a voz orgulho do Brasil”, o melhor era seguir sorrindo após compreender que não podia partir. Muita estrada ainda. Ganhou uma taça, encheu-a e não só por fisiologia ou simples prazer, mas por pura convicção, afirmou resoluto que apesar dos pesares seria pai, sim, com muito gosto. E previu que seria difícil, mui difícil.

André Salviano 

(*) A verdade está no vinho

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