Presente da vida

Em uma rodinha de médicos, é inevitável que, em algum momento, alguém venha com alguma piadinha profissionalmente incorreta. Como aquela do Dutra:

‘Lá no asilo de velhinhos, Mariazinha estava inconformada porque o namorado a trocara por uma recém chegada, e partiu direto para o confronto: escute aqui, João, o que é que esta novata tem que eu não tenho?

- Parkinson.'

Enquanto todo mundo ria ou fingia rir, eu me lembrei de minha amiga Syntia com S, sim, em homenagem, segundo sua mãe, ao quarteto em Si, conjunto de muito sucesso na gravidez dela.

Pois a minha amiga Syntia, aos 65 anos, tem, entre outras patologias graves, Parkinson. A casa de Syntia foi sendo adaptada ao longo dos anos. Começou com as barras de apoio no banheiro, que se espalharam pela casa toda até o vestíbulo de entrada, a mesa de refeição e a escrivaninha onde ela trabalha, com apoios, semelhantes àquelas dos navios antigos, quando a cada balançadinha, os pratos e copos escorregavam pelas mesas. A retinopatia diabética deixou minha amiga quase cega, um aneurisma a levou para a mesa de cirurgia, um rim foi transplantado, e ela ali, risonha e firme.

Risonha, sim, e por isso, a casa dela vive lotada de amigas, que se sentem absolutamente impedidas de reclamar seja lá o que for de suas próprias vidas, se a Syntia está lá, nos recebendo com música – a voz dela, seu maior tesouro, foi poupada pelas doenças – inventando todo tipo de projeto social, desde coletar pilhas até criar minhocas para aproveitar o lixo orgânico caseiro economizando em compra de húmus de minhoca para os vasinhos de plantas dos condomínios e apartamentos de todos.

Ir a uma das reuniões na casa de Syntia é receita certa para sair renovada para os embates cotidianos desta brasileira vida.

Pois em uma dessas segundas- feiras de chuva, eu a encontrei, sozinha. Chovia muito, mesmo, uma daquelas chuvaradas durante as quais o santista brinca dizendo que esqueceu a canoa em casa.

Ela me recebeu com bolinho de cenoura e chá, lanche que a empregada tinha deixado pronto para nós sobre a mesa da sala, e um brilho de felicidade no olhar que há muito eu não via em ninguém.

- Minha querida, estou amando. – e ela riu, uma risadinha atrevida – Quem diria, não é, na minha idade!

Eu me encolho, apreensiva. Syntia tinha justamente acabado de sair de uma de suas internações de quase um mês, estaria ela começando a caducar? Ela se inclina para mim e confessa: é o padre.

Quase engasgo. O padre, que foi chamado pela família, ao que sei, para a extrema unção?

E Syntia me conta tudo.

Que o padre, bonitão, afastou toda a família e pediu pra ficar a sós com ela no quarto. No primeiro dia, conversaram todo aquele blábláblá e lerolero da igreja e a Syntia foi logo avisando que estas catolicices não faziam parte da vida dela, que, há anos, freqüentava era terreiro de umbanda. E, como é de seu costume, foi torcendo as palavras do padre, com sua música e seu riso, falando de todas as alegrias pelas quais era bem grata à vida, e de todas as boas lembranças que colecionara ao longo da existência, e que estava, como sempre esteve, mais do que bem preparada para morrer a qualquer tempo e a qualquer hora, certa de que tinha feito seu trabalho de formiguinha e plantado suas sementinhas aqui e ali ao longo do caminho.

Aí o padre a abraçou forte e pediu para voltar nos dias seguintes, só para conversar, mas que ela mantivesse as conversas em segredo, e ela, inocentemente, concordou. E, a partir daí, toca o padre a vir todos os dias, entrando com ar compungido e saindo risonho. Pois, no segundo dia, sapecou-lhe um beijo na boca e declarou-se ardentemente apaixonado, passando das palavras aos gestos, trancando a porta, tirando a roupa de Syntia e ignorando todas as recomendações médicas, pois, se vamos todos morrer mesmo, que morramos amando, filosofia bem de acordo com a de Syntia.

E agora, que ela teve alta, o padre aparece lá na casa dela, tarde sim, tarde também, para os seus momentozinhos de amor.

Minha primeira reação foi de indignação. Como é que aquele safado tira proveito de uma mulher doente, quase inválida, e a inocente da Syntia nem percebe que está sendo usada? Mal ouço as novas letras de música que ela está compondo para o novo amado, até que uma frase carinhosa desperta meu entendimento.

Quem está usando quem? Minha amiga Syntia está no lucro. Quem poderia encontrar um namorado dentro de uma enfermaria para doentes graves? Só Syntia, mesmo. E quem é que diz que o homem não foi mesmo capturado pela alma alegre e resiliente de minha amiga? Que, sobre todos os outros aspectos, é merecedora de todo o amor do mundo?

Ponho-me a rir.

- Syntia, quem diria, você tirando o padre do bom caminho!

E ela, a piscar os olhos, marota:

- Bem, você sabe, eu posso, não sou católica. Porque vou dizer não aos presentes da vida?

Sonia Regina Rocha Rodrigues

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