A Linguagem e O Caminho para a Linguagem
— Fragmentos (***)

       O homem fala. Falamos quando acordados e em sonho. Falamos continuamente. Falamos mesmo quando não deixamos soar nenhuma palavra. Falamos quando ouvimos e lemos. Falamos igualmente quando não ouvimos e não lemos e, ao invés, realizamos um trabalho ou ficamos à toa. Falamos sempre de um jeito ou de outro. Falamos porque falar nos é natural. Falar não provém de uma vontade especial. Costuma-se dizer que por natureza o homem possui lingagem. Guarda-se a concepção de que, à diferença da planta e do animal, o homem é o ser vivo dotado de linguagem. Essa definição nos diz apenas que, dentre muitas outras faculdade, o homem também possui a de falar. Nela se diz que a linguagem é o que faculta ao homem ser o ser vivo que ele é enquanto homem. Enquanto aquele que fala, o homem é: homem. Essas palavras são de Eilhelm von Humboldt. Mas ainda resta pensar o que se chama assim: o homem.

(...)
       A linguagem é linguagem: a linguagem fala. Vaindo no abismo desta frase, não nos precipitamos todavia num nada. Caímos para o alto. Essa altura entreabre uma profundidade. Altura e profundidade dimensionam um lugar onde gostaríamos de nos sentir em casa a fim de encontrar uma morada para a essência do homem.

(...)
       Sem dúvida, falar é articular sons. Falar pode também ser definido como uma atividade humana. Ambos são representações corretas da linguagem como fala. Não discutiremos agora nenhum deles, embora não se deva esquecer que de há muito o soar da linguagem espera por uma definição adequada. É que a explicação fonético-acústico-fisiológica da sonância da linguagem não faz a experiência da consonância do quieto como a sua proveniência e muitomenos da concepção aí gerada do soar.

(...)
       Conhecemos a fala como a verbalização articulada do pensamento por meio dos órgãos da fala. Mas falar é ao mesmo tempo escutar. ´R hábito contrapor a fala e a escuta: um fala e o outro escuta. Mas a escuta não apenas acompanha e envolve a fala que tem lugar na conversa. A simultaneidade de fala e escuta diz muito mais. Falar é, para si mesmo, escutar. Falar é escutar a linguagem que falamos. O falar não é ao mesmo tempo mas antes uma escuta. Essa escuta da linguagem precede da maneira mais insuspeitada todas as demais escutas possíveis. Não falamos simplesmente a linguagem. Falamos a partir da linguagem. Isso só nos é possível porque já sempre pertencemos à linguagem. O que é que nela escutamos? Escutamos a fala da linguagem.
       Mas será então que a linguagem fala? Como a linguagem pode falar se ela não está equipada com órgãos da fala? Mas a linguagem fala. Ela segue de início e propriamente o vigor próprio da fala: a saga do dizer. A linguagem fala dizendo, ou seja, mostrando. Seu dizer surge da saga de há muito já dita e não obstante ainda não dita, que perpassa a rasgadura do vigor da linguagem. A linguagem fala à medida que, enquanto mostrante, alcança todos os campos de vigência, deixando aparecer e transparecer o que cada vez é vigente a partir de si mesmo. Nesse sentido escutamos a linguagem deixando que ele nos diga a sua saga. Qualquer que sejam os modos de escuta, sempre que escutamos alguma coisa, escutamos o deixar dizer, que abarca toda escrita e representação.

Martin Hidegger

Do livro: "A caminho da linguagem", trad. de Marcia de Sá Cavalcante Schuback, Ed. Vozes e Ed. Universitária de San Francisco, 2003, Petrópolis/EUA

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(***) Trechos das vls. 5, 10. 201, 203.

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