O NARRADOR - Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov e sobre o conceito de história
Fragmentos

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O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa - contos de fada, lendas e mesmo novelas - é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive. O primeiro grande livro do gênero, Dom Quixote, mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um dos mais nobres heróis da literatura são totalmente refratárias ao conselho e não contêm a menor centelha de sabedoria. Quando no correr dos séculos se tentou ocasionalmente incluir no romance algum ensinamento - talvez o melhor exemplo seja Wilhelm Meisters Wanderjahre (Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister) -, essas tentativas resultaram sempre na transformação da própria forma romanesca. O romance de formação (Bildungsroman), por outro lado, não se afasta absolutamente da estrutura fundamental do romance. Ao integrar o processo da vida social na vida de uma pessoa, ele justifica de modo extremamente frágil as leis que determinam tal processo. A legitimação dessas leis nada tem a ver com sua realidade. No romance de formação, é essa insuficiência que está na base da ação.

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A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão - no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. Os narradores gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa história a uma experiência autobiográfica. Leskov começa A fraude com uma descrição de uma viagem de trem, na qual ouviu de um companheiro de viagem os episódios que vai narrar; ou pensa no enterro de Dostoievski, no qual travou conhecimento com a heroína de A propósito da Sonata de Kreuzer; ou evoca uma reunião num círculo de leitura, no qual soube dos fatos relatados em Homens interessantes. Assim, seus vestígios estão presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relata.
(...)
Talvez ninguém tenha descrito melhor que Paul Valéry a imagem espiritual desse mundo de artífices, do qual provém o narrador. Falando das coisas perfeitas que se encontram na natureza, pérolas imaculadas, vinhos encorpados e maduros, criaturas realmente completas, ele as descreve como "o produto precioso de uma longa cadeia de causas semelhantes entre si". O acúmulo dessas causas só teria limites temporais quando fosse atingida a perfeição. "Antigamente o homem imitava essa paciência", prossegue Valéry. "Iluminuras, marfins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamente polidas e claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposição de uma quantidade de camadas finas e translúcidas... - todas essas produções de uma indústria tenaz e virtuosística cessaram, e já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado." Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas.

Walter Benjamin

Do livro: Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras escolhidas, vol. I), Brasiliense, 1987, SP.

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