Postscriptum Sim!

Sim! A música é ouvida. Ela não ouve, ela dá-se. Dá-se como tempo e espaço em que estes são suspensos respectivamente, como cronologia e extensão, e afirmados como tempo e espaço vividos. Ela se dá como medida concreta. Como medida concreta espaço-temporal, isto é, ser. Quando ela se dá instaura simultaneamente uma temporalidade e uma espacialidade e, ao mesmo tempo requisita uma surdez para tudo que ela não é. Ela instaura o corpo como audição. Cada parte do corpo é toda ouvidos. Essa é a magia.
Sim! A magia de um corpo sendo tocado, perpassado por outro numa tensão que se inicia com a música e perdura para além dela mesma. Com a música dois corpos ocupam o mesmo lugar, o mesmo ser-tempo, numa especialíssima constituição do que é real.
Sim! Real instaurado como ação poética — mesmo que a expressão seja em si mesma redundante. Toda ação é, ou pelo menos deveria ser, poética, isto é, geradora do encanto de trazer o ausente para a presença. Esse é o poema inacado de que todos nós, saibamos ou não, participamos. O real não é outra coisa senão um poema, completamente incompleto, que não cessa de se dar em sua multiplicidade.
Sim! Todo poema é poema de uma sonoridade e de uma temporalidade de presenças e ausências. Todo poema engendra música já que é uma afirmação de sua surdez, de sua temporalidade e de sua sonoridade. A surdez é componente de todo poema, de toda ação e de toda música. Nenhum poema não tem música. Todo poema é música! É por sua musicalidade que ele nos chega mesmo quando nçao o entendemos muito bem.
Sim! Nós somos o Música Surda. E este é o nosso projeto — trabalhar para constituir o que nunca poderá ser desconstituído, uma surdez essencial como única condição e única possibilidade da música como real instauração do real, como constituição da mágica essencial em que os que não são surdos mas, tão somente estes, se esqueçam para se lembrar de que não podem mais esquecer o que se instaura desde uma poiesis, desde um fazer que seja capaz de se fazer vigoroso e essencial.
E — ainda uma vez — Sim! Este é o Livro das Canções. Este é o encontro essencial de nossa poesia — nossa música — com a poesia — quer dizer com a música — de Dante Milano, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Fabiano Hollanda, Andréia Pedroso, Adriano Alves, Luís de Camões e Diego Braga.
Não! Definitivamente não! Este não é um trabalho que traga consigo a banalidade imperante articulada a partir dos arremedos em que a música não é mais que uma mera desculpa para a idiotia dominante e fácil. Mera desculpa para massagear as audições entorpecidas e dormentes. Não! Se o esperado é isso... se o leitor espera por isso... pode parar por aqui. Desista! Não é esse o encontro que este trabalho pretende engendrar. O que seria este Livro das Canções então?
— Um convite! Sim! Apenas um convite...
Aí está o Livro das Canções! Aí está o Música Surda!
Afinal, nós convidamos à surdez vigorsa e, portanto, essencial — musical!
Sim"

Antonio Jardim

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Texto da quarta-capa de O Livro das Canções, livro-CD do Grupo Música Surda, FAPERJ, 2007, RJ

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