LIVROS E GUARDA-CHUVAS PERDIDOS

Dizem que os guarda-chuvas, quando se perdem vão para uma terra só deles. Acredito muito nisso, porque é só você pensar: quantas pessoas você conhece que perderam guarda-chuvas ou sombrinhas? E quantas você conhece que acharam esses objetos alguma vez na vida?
A desproporção entre quem perdeu e quem achou é muito grande, assim só pode existir mesmo a terras dos guarda-chuvas perdidos, que deve ficar ao lado da terra dos livros perdidos. Quem tem uma quantidade razoável de livros, e não prima pela organização, sabe que eles também somem com facilidade.
Em relação aos livros, existem dois tipos de sumiço: o primeiro é aquele em que o livro “desaparece” dentro da biblioteca mesmo. O segundo, é aquele em que o livro desaparece para sempre, pois ou esquecemos para quem ele foi emprestado, o que nos impede de pedi-lo de volta, ou o perdemos em algum lugar. Sou vítima constante do primeiro tipo de sumiço: procuro e reprocuro, e se não acho, dou um passeio, deixo passar uma noite e, quando volto o livro está lá, parece que também estava me procurando, parece que tinha ido apenas dar uma volta para descansar e me encontrar mais tarde e por causa disso nos desencontramos.
Quanto ao segundo tipo de sumiços, temos a figura do “emprestador”, alguém para quem cedemos, além do livro, a confiança da devolução. Nem sempre o livro volta, o que gera uma raiva por ter desafiado a verdade contida nesse quase ditado: “trouxa é quem empresta um livro e mais trouxa ainda é quem devolve”.
Mas o meu problema não está só em emprestar o livro, mas em esquecer para quem emprestei. Acontece comigo também, tal é o esquecimento que já cheguei ao ponto de não saber se emprestei ou se perdi o livro, assim como os milhares de guarda-chuvas que já “esqueci” por aí.
Há anos vivo com o incômodo de não saber o que aconteceu com um livro. Era “Ascese – os Salvadores de Deus”, de Nikos Kazantzakis. Traduzido por José Paulo Paes, o livro tinha passagens muito poéticas, falava sobre a elevação do homem até o sagrado, e eu o emprestei não sei para quem, ou talvez tenha perdido não sei onde. É algo estranho este não saber, este deletar completamente da memória um possível destino do livro.
Quem é leitor sabe que damos muito valor a esses objetos, que não estamos tratando de guarda-chuvas, por isso, esquecer de um livro, esquecer o que aconteceu com ele é traí-lo. É isso, sinto-me um traidor do livro. Ele era meu, estava todo marcado com meus sublinhados e rabiscos, e eu o abandonei em algum lugar.
Talvez uma sessão de hipnose, um transe mediúnico me informe que o meu livro perdido está bem, está na terra de todos os livros perdidos, que fica ali, vizinha à terra dos guarda-chuvas perdidos e que, nos finais de semana, eles se encontram e lamentam a ingratidão humana disfarçada de esquecimento.

Rubens da Cunha

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