FELIZES TEMPOS DE PRIMAVERA

Há não muitos anos, Verão era Verão, Inverno era Inverno e, conseqüentemente, também Outono e Primavera tinham suas características bem marcadas. Quando as folhas das árvores, terminando seu ciclo de vida como folhas, desciam dos galhos ao sabor dos beijos dos ventos para banhar-se nas poças de chuva, era Outono. Quando flores de todas as espécies coloriam e perfumavam avenidas e ruas, era Primavera, clima agradável, quadro vivo de terna harmonia.
Durante os tais não muitos anos que passaram desde então, a cidade cresceu, inchou, multiplicando caminhos de asfalto onde havia árvores, substituindo cada semana inúmeras plantas por imóveis de grande altura ou por cabos telefônicos entre outros.
Até o majestoso chorão que bondosamente oferecia seus galhos às minhas pequenas mãos à janela da sala, da qual era verdejante cortina, foi sacrificado em nome da proteção dos canos do imóvel, dos carros que estacionassem nas proximidades, da limpeza da calçada, como se as folhas que tão gentilmente derramava para atapetar nossa entrada fossem sujeira...
O clima cedeu a tais forças e hoje temos todas as estações num mesmo dia e nenhuma na época esperada. Já não é possível saber quais as roupas adequadas pois manhãs frias podem seguir-se de tórridas tardes e estas, de noites frescas ou geladas...
Coisas de tempos muito apressados, industrializados, eletrônicos mas nem tão saudáveis...
Quando havia estações, no início do inverno, com sua maravilhosa caligrafia meu pai desenhava no calendário, dentro do quadrinho de cada dia, números decrescentes a partir de noventa. Cada dia, riscava um dos números que traçara, comunicando quantos faltavam para a esperada Primavera. Havia semanas que sentíamos longas como um filme chato, outras nem tanto até que, como flor incomparável , se oferecia a nosso encanto seu sorriso de particular plenitude, para anunciar a chegada do império dos jardins.
Ele, que passava madrugadas nos Correios, em cujo andar superior habitávamos para que estivesse sempre disponível, particularmente quanto ao telégrafo, então único meio de comunicação imediata ( ao lado do telefone, de que a maioria da população não dispunha e que era, além disso, muito caro ) antes da aurora encaminhava ou até carregava malotes de correspondência à estação rodoviária, não raro com seus passos quebrando o gelo acumulado nas calçadas, para que as cartas seguissem ao destino com maior brevidade. Não era tarefa do Agente nem do Tesoureiro que ele era, contudo sua ética quanto aos interesses dos clientes ultrapassava as fronteiras de suas funções pelas quais, aliás, não acumulava salários: embora ganhasse por uma, exercia ambas, não raro várias ou muitas outras, conforme as urgências ou necessidades.
Na Primavera, tão mais benéfica à sua saúde, deliciava-se com as correrias ao amanhecer e com nossos longos passeios noturnos pela cidade sem medo de crimes.
A partir do número três de sua tabela de espera, ingênua agitação invadia nossos diálogos e enfim, no número zero, comemorávamos a beatitude dos primeiros sinais da Primavera, por ele festejados com lampejos da ternura de um ninho de pássaros e da pureza da delicada rosa porcelana de nosso jardim, destaque em exposições mas não mais que em nossas noites em família, em volta do prédio, regando plantas ao som do Morse, brincando sob os girassóis com nossos gatos e cadelas, então únicos e eficientes guardas do local, à rua Sinimbu 1951, esquina com Visconde de Pelotas.
Gatos, cães, flores, convívio familiar, sorrisos... o que a cidade grande fez deles ?
Seria isso o progresso, apagar todos os verdes numa enlouquecida invasão do espaço das outras espécies, esta desorientada mistura de estações por desrespeito à natureza ?
Que fazer deste sonho de redesenhar no calendário os tão felizes tempos da Primavera ?

Lia-Rosa Reuse

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