O PODER DA SERPENTE

É sem sombra de dúvida, a serpente, o animal que mais provocou interpretações míticas e simbólicas. Benéfica para uns, maléfica para outros, mas não cessa de fascinar os homens. É considerada a forma de vida mais arcaica do planeta, reduzida à sua forma mais simples. Animal frio e deslizante, sem pelos, sem penas, sem patas...

Sua estranheza lhe confere antiguidade fabulosa. De fato, no relato bíblico do Gênesis, a serpente é o personagem central da cena da tentação de Eva (Gênesis III, 1-5), que lhe custou a maldição de Yahvé (Gênesis III, 14-15).

Mas muito antes dos redatores da Bíblia atribuírem esse papel essencial maléfico à serpente, provocadora do pecado original, no espírito dos homens da Antiguidade, a serpente encarnava as forças vitais e originais sinistras que podiam ser ora criadoras, ora destrutivas. Assim, o chamado "Enouma Elish", o grande poema babilônico da criação do mundo, a Mãe que deu à luz o mundo e os deuses, símbolo das águas primárias de onde toda a vida surgiu na Babilônia, o mar era chamado "tamtou" ou "tiamtou", representava-se como uma grande serpente ao mesmo tempo macho e fêmea, ou seja, hermafrodita ou andrógina.

A serpente é o deus antigo que se encontra no começo de todas as cosmogêneses, o estado primeiro do pensamento, e também está ligada intimamente com a Grande Deusa. Ela é feita à imagem das divindades do oceano, um ser arcaico e fundamentalmente inumano, é o terror primordial ou "cósmico". Essa força indômita é a juventude do mundo em seus furores convulsivos. Porque a serpente, assim como o dragão, é ligada não só à terra, mas também à água.

Na cosmogênese grega, segundo a Teogonia de Hesíodo, ela é o próprio "Oceano". Nove de suas espiras abarcam o círculo do mundo, enquanto a décima, resvalada para debaixo do mundo, forma a Estige.

A matéria prima essencial é a substância da serpente. Esta matéria prima está muito próxima da água primordial, e a serpente é também o Espírito da água primeira, ela é o espírito de todas as águas., aspecto que também é encontrado no dragão. Na mitologia grega, Aquelôo (o maior rio da Grécia antiga) se metamorfoseou em serpente para enfrentar Hércules. E não é comum dizer que o rio serpenteia?

Enquanto antepassado mítico e herói criador, a serpente se encarna e se sacrifica pelo gênero humano. Seu sangue é então a chuva alimentadora. A sua forma mais conhecida é o Quetzalcoatl (Serpente Emplumada=misto do pássaro Quetzal ) dos toltecas, retomado pelos astecas. O nome Quetzalcoatl é composto dos termos "pluma da cauda" e "serpente". Este deus da Morte e do Renascimento tinha natureza complexa, ao mesmo tempo o céu e a terra, a luz e as trevas, a vida e a morte. Ele é um deus agonizante e ressuscitado. É também um rei herói promotor da cultura, representante do princípio da luz e dos seres humanos. Ele funde o aspecto ocidental letal ao aspecto oriental, como estrela vespertina e matutina. Nesta última concepção, é um símbolo de poder ascendente masculino-espiritual do céu e do sol. Por esta razão ele é ligado ao símbolo do oriente, a serpente alada, o aspecto vento-espírito. Deste modo, ele é também o deus do conhecimento e um dos seus atributos é a torre espiral ascendente.

Os índios Cora acreditam que, no ocidente do mundo, vive uma serpente poderosa, a noite concebida sob a forma de água, que a estrela matutina abate quando se levanta e que a águia, o céu diurno devora. Se isso não acontecesse o mundo seria inundado pela água.

Quetzalcoatl não é uma entidade abstrata, mas um arquétipo sugerido por uma gama de símbolos. É o deus do vento circulante, da fertilidade, que deve morrer para fertilizar o mundo com o seu sacrifício, mas também é o penitente que transforma a si próprio. É o símbolo unificador e filho das divindades primordiais céu e terra e que combina o caráter inferior de serpente com o superior, da ave.

Esse deus era descrito como tendo pele branca e rosto barbudo. A profecia segunda a qual a Serpente Emplumada voltaria um dia pelo mar e reivindicaria o trono foi explorada pelo conquistador Fernando Cortez em 1519-1521.

P. Gordon escreve: "O homem-serpente, ou dragão, foi, conseqüentemente, o personagem transcendente por excelência, aquele que transformava os neófitos em iniciados. Em seguida, foram identificadas com ele as construções sinuosas, chamadas labirintos, edificadas nas grutas e embaixo da terra, depois erguidas em cima da terra; penetrando nessas estruturas de pedra, os noviços se engajavam nas dobras do réptil sobrenatural; a serpente os engolia, fazia-os morrer e os devorava, a fim de metamorfoseá-los na sua essência imortal; a permanência no mundo subterrâneo equivalia a uma digestão do homem pelo super-homem e terminava em uma transsubstanciação".

A noite, o abismo, o mar, as profundezas aquáticas, a serpente, o dragão, a baleia, todos estes símbolos estão entremeados e contaminam-se reciprocamente. A água tragadora, o útero-terra destruidor, o abismo da morte, a serpente hostil da noite e da morte, a baleia no mar são todos aspectos do inconsciente negativo que vive no interior da terra como "água das profundezas", sob o mundo dos homens, na escuridão da noite e que representa o perigo das águas torrenciais que ameaçam inundar o mundo.

Esta é a razão pela qual o Feminino, como a deusa maia Ixchel é o letal jarro de água, a deusa da lua e das enchentes fatais.

O símbolo desta deusa é o vaso emborcado do infortúnio. Além disso, sobre sua cabeça repousa a serpente mortífera. Suas mãos e pés têm garras afiadas de animais e o seu traje é adornado com as cruzes feitas de ossos, o emblema da morte.

A deusa Ixchel foi adorada pelos maias da península do Yucatã, em Cozumel, sua ilha sagrada. A deusa da Lua e da Serpente ajuda a assegurar a fertilidade pelo fato de segurar o vaso do útero de cabeça para baixo, de modo que as águas da criação possam estar sempre jorrando.

Somente o herói solar da consciência, aquele que sempre triunfa sobre a serpente abissal, sabe a forma de conter a calamidade provocada pela inundação. Essa vitória do herói ocorre a leste, o ponto oriental onde nasce o sol ou, como no México, ocorre no zênite do meio-dia, o que é exatamente análogo à adoração do herói lunar como lua nova ou lua cheia.

Os exemplos da serpente como deus criador ou antepassado mítico são muitos, seja como deus-serpente dos aborígines australianos (bobbibobbi), a serpente dos mitos dos massins da Papuásia, que preservou o fogo contra as chuvas torrenciais de Goga (deusa da chuva e do fogo), ou o Nommo (ou Nunno) dos dogões do Mali (deus da água, reptiliano, antepassado mítico e herói civilizador).

Vê-se que a serpente, enquanto deus primordial, é ligada à chuva fertilizadora e à fecundidade, assumindo uma função que pode ser chamada de "meteorológica". Essa concepção existe em todo o mundo: a idéia segundo a qual o arco-íris é uma serpente que se desaltera no mar foi colhida na França (Paul Sébillot), mas também entre os ameríndios de Nevada, entre os bororos da América do Sul, na África do Sul e na Índia. Na China se fala que "a terra se une com o dragão".

A Serpente cósmica, é a imagem da divindade primeira e misteriosa da aurora dos tempos. Criadora do mundo, mas também sua destruidora. Assim, para os batacs da Malásia, uma serpente cósmica, que vive nas regiões subterrâneas, destruirá o mundo. Para os huichols, ela tem duas cabeças, que são mandíbulas monstruosas, uma aberta para Oeste, a outra, para Leste, pelas quais ela cospe o Sol levante e engole o Sol poente. Na mitologia germano-escandinava, a Serpente de Midgard, que abarca o mundo inteiro com seus anéis, será um dos principais personagens da destruição do mundo, por ocasião do Ragnarok.

No Egito, a serpente Atum é o Velho Deus, que depois de ter emergido por si mesma das águas primordiais, cuspiu a criação toda, no começo dos tempos. Para alguns autores, o tal "cuspe" não provinha de sua boca, mas de seu sexo. Tendo-se masturbado, Atum criou assim o primeiro casal de deuses, Chtu e Phtênis, que puseram no mundo Gen (a Terra) e Nut (o Céu). Depois os deuses geraram o resto do mundo. Segundo o "Livro dos Mortos", contemplando sua criação, Atum acrescenta:

"Sou aquele que permanece...O mundo retornará ao caos, ao indiferenciado, e eu me transformarei então em serpente que nenhum homem conhece, que nenhum deus vê!"

Atum se coloca além dos deuses e afirma sua onipotência. Sozinho no começo...sozinho no fim. Este deus tem um rosto terrível e implacável. Prefigura a serpente maléfica, poder primordial e hostil, estranho e solitário, o qual encarnará o Diabo, segundo os cristãos.

Mais próximos de nós, a noção de libido, utilizada desde 1880 pelos fundadores da sexologia para designar a energia própria do instinto sexual  e retomada por Sigmund Freud no ano de 1905 em sua obra "Três Ensaios sob a Teoria da Sexualidade", designa a manifestação do impulso sexual na vida psíquica que seria simultânea a um impulso de vida (simbolizado por Eros, o deus grego do amor) e a um impulso de morte, representada por Tânato, a divindade grega alada que personifica a morte. Assim, quer se relacione com uma das lendas cosmogônicas mais antigas ou com as mais recentes teorias da psicanálise, esta crença em uma energia primordial com efeitos criadores e destruidores que assedia o homem, ainda hoje subsiste e permanece unida e é muitas vezes representada por uma serpente.
 

A KUNDALINÎ

A coluna vertebral é formada pelo caduceu de Mercúrio, cujas duas serpentes simbolizam a kundalinî.

"A Kundalinî é a serpente invisível que dormita em cada um de nós. Nas fontes da energia sexual, seu poder é despertar a consciência."

Segundo o hinduísmo, a kundalinî é a energia primordial ou, mais exatamente, uma concentração de energias divinas e primordiais.

É um componente essencial do ser humano, tal como o coração, o cérebro e os órgãos vitais. Ela é chamada força ou potência da serpente porque está adormecida e enrolada na base da coluna vertebral.

Quando a serpente do fogo da kundalinî desperta, ela silva e se enrijece, é a subida da força vital, da libido, que começa sua ascensão de chakra em chakra, ou lótus ou centro de forças, até o despertar de todos os centros nervosos. Estes liberam os fluxos de energia primária e divina que todos trazemos, iluminando nossa consciência e favorecendo assim uma participação plena e inteira do homem na vida cósmica.

As técnicas da yoga, cuja base é a kundalinî, ao que parece, provêm da cultura e civilização hindus.

De fato, embora os símbolos hindus da serpente mostrem pontos em comum com os que vemos na Europa, no Oriente Médio, na África, ou na Ásia, só o hinduismo anuncia estes dois fundamentos essenciais: a fé na lei do "karma" e o despertar e subida da kundalinî ao longo dos charas, que provocam o "samâdhi", êxtase ou estado de consciência superior.

Segundo esta crença, a kundalinî pode ser ativada com a energia dinâmica do alento vital, ou "prâna", que penetra no corpo através da respiração. O Prânâ-yâma é uma técnica de yoga muito elaborada que permite dominar e dirigir a respiração para os pontos vitais do corpo. Na índia, esta técnica era utilizada "as vezes com fins terapêuticos para vivificar ou estimular um órgão doente e debilitado.

O "prâna" circula então por todas as partes do corpo, pelos canais sutis, os "nadis", que são como vasos sanguíneos e veias do corpo sutil.

Os "nadis" principais são os "sushumnâ", que corresponde ao trajeto da medula espinhal na coluna vertebral, à volta da qual se enroscam em espiral os "idâ", associados ao parassimpático, chamado canal lunar, e o "pigalâ" em relação com o sistema simpático, chamado canal solar.

Continuando o trajeto dos "nadis", as energias positivas solares e negativas se estimulam e se misturam, atravessando os sete chakras que se abrem como as pétalas de uma flor de lótus. É assim que os hindus utilizam o poder da serpente ou kundalinî para libertar o homem das tensões, de seus desejos, esperanças e o encarceram na lei cósmica do karma, segundo a qual cada ação psíquica ou física provoca causas e efeitos que se reproduzem até o infinito. Na Índia, as técnicas milenares da yoga, que favorecem o despertar da kundalinî, ainda estão vigentes.

Passando para o macrocosmos, vemos o equivalente da kundalinî é a serpente cósmica Ananta, que aperta seus anéis a base do eixo do mundo: ela é um cosmóforo e assegura a estabilidade do mundo.

Associada à terra, a serpente encarna as correntes subterrâneas, assegurando a estabilidade de casa. É por isso, que na Índia, para se construir uma casa, começa-se enterrando uma estaca na cabeça do nâga subterrâneo, cuja localização é determinada pelo gomante (em  sânscrito, o termo "nâga" significa serpente e também elefante, ambos cosmóforos).

Deslizando como areia entre os dedos, a serpente mal existe, talvez seja um fantasma encarnado e imprevisível. Possui uma suavidade aparente, mas quando se enrosca e aperta, é para sufocar, engolir e digerir para depois retornar ao seu sono...

"A serpente, escreve Jean-Paul Persigout, é a luz criadora da vida por intermédio do verbo; ela é, ao mesmo tempo, éter, luz e verbo, e engloba todas as coisas. Seu aspecto ctônico lembra a permanência da luta entre a vida e a morte, inseparáveis uma da outra."

Texto pesquisado e desenvolvido por

Rosane Volpatto