A  VOLTA  DE  PELÉ
 
Solé ficou cismado. Como quê do nada, aquele cãozinho estranho aparecera na porta de casa e dali não arredava as patas. Bastava entreabrir o portão e como um zás o bichinho se escalavrava entre as frestas de ferro e a parede e adentrava a casa como se possuísse intimidade com o ambiente, a posição e a característica dos móveis, a disposição dos cômodos, com as pessoas. Fazia a leitura da área nos fundos através do olfato e deitava estirado, relaxado ao pé da rede.

Quando o cãozinho viu Ramiro, filho de Solé, hoje com oito ou nove anos, foi como um reencontro entre velhos amigos separados pelo tempo. Solé ficou grilado. Ficou grilado, mas não deu muita importância. Eram tantos os cães nas alamedas da quadra 31 que nenhum dos moradores distinguia com exatidão quem era dono de quem. Chusmas vadias de cães costumavam acompanhar as brincadeiras e folguedos das crianças nas calçadas e, às tardes mornas, deitavam no meio da rua para uma confraternização típica. Um coçava as costas se esfregando no asfalto, outro cochilava, alguns roíam gravetos e pequenos pedaços de ossos, namoravam, bocejavam. Faziam parte da paisagem da Vila União.

Solé saia de casa para ensaiar e na volta lá estava o cãozinho na porta abanando o rabo e ladrando com ansiedade. Solé enxotava o bicho acreditando que logo seu dono apareceria, aquilo não duraria muito. A chuva não dá trégua essa época do ano e lá permanecia ele, empapuçado de água, lambido e lambuzado sob o temporal e do portão não arredava as patas.

Solé é um musicista sensível e concentrado. É difícil precipitar uma decisão ou concluir de estalo uma análise ou um raciocínio. É um cara muito tranqüilo, muito na dele. Resolveu perguntar à Maria, sua mulher, sobre aquele cãozinho peludo, preto, vira-lata do porte de um Basset. Maria acreditava que ele estava ali por conta do cio da Bibi. Bibi era a cachorrinha da casa, uma gracinha, branquinha, quase Poodle Toy. Ele está namorando a Bibi, retrucou Maria. Cachorro é assim mesmo, percebe o hálito do cio de uma cadela quilômetros de distância e guiado pelo instinto atravessa o mundo para realizar seu afeto. Maria também não sabia se o cãozinho pertencia a algum vizinho. Ramiro, que sabe cada pessoa do bairro e cada pedra das calçadas desconhecia a origem do cão, mas já se afeiçoara a ele. Vamos ficar com ele pai, vamos? Eu não conheço ele pai, mas acho que ele me conheçe. Enquanto falavam, o cãozinho conseguiu entrar e deitou com pose de dono da casa na varanda.

Solé procurava na memória a supra-familiaridade que o bicho expressava com o filho e com o ambiente doméstico. Sentou e enrolou seu saboroso porronca com a mesma paciência e atenção que escutava o rangido agudo, os guinchos dos ganchos da rede. Tudo é uma possibilidade de música. Recostou o corpo, aspirou o incenso aromático das folhas enroladas no papel seda e matutou. O cãozinho se aprochegou com jeito de parceiro e como se fosse de costume deitou a seu lado, ao pé da rede. A rede cantava sua música de acordes agudos e movia leve, lenta. Solé brincava de encontrar imagens nos desenhos da fumaça do cigarro balangando com o ritmo da rede e logo lembrou do Marcio Belo. Quantas peripécias, quantas aventuras juntos viveram. Marcio Belo é musico, percussionista. Viajaram por todo o Brasil em apresentações e shows. Viveram cada uma...

Os produtores de arte e cultura são, regra geral, mambembes. A arte é mambembe. A arte escolástica tende à burocracia. A arte vivificada, integrada na existência, expressa desejos permanentes de liberdade. E a cada liberdade conquistada almeja uma liberdade maior.

Ao lembrar de Marcio Belo desenhando com os olhos a fumaça do porronca, recordou que perto de uns dois ou três anos passados Marcio partira pra Mato Grosso a fim de integrar uma orquestra em Cuiabá ou coisa assim, e, deixara com ele o cãozinho Pelé. Solé espertou o pensamento. Baixou a cabeça e se pôs a interpretar com detalhes aquele cachorrinho teimoso. Era Pelé? Estava um tanto mais magro, mas era muito parecido, quase idêntico. Mas será possível? Quando Marcio Belo viajou, não havia perspectiva de retorno. Podia demorar um mês, um ano, poderia ficar para sempre em Cuiabá. Deixou Pelé com Solé e nem fez muitas recomendações. Nem quis se despedir com carinhos e intensidades. Gostava demais do cachorro, que percorrera junto a ele uma boa parte da trajetória da vida. Não tinha como levar seu pequeno e fiel companheiro, então resolvera deixá-lo com um grande amigo. Na certa ele saberia curtir o temperamento amável e bem humorado de Pelé. Pelé adorava brincar com bola, corria e caminhava com uma elegância surpreendente para um cão daquele porte. Porém, logo depois da partida de Marcio Belo, Pelé sumira, babau! Ninguém viu por onde, ninguém sabia do paradeiro do cão. Meses depois, quando Marcio chegou e soube, ficou inconsolável.

Solé apagou o porronca, sentou na rede, abriu os braços em direção ao cão e tentou – Pelé! O cachorro pulou em seu colo e bramindo, beijou, lambeu Solé com sofreguidão de reconhecimento. Nem mesmo essa prova foi suficiente para convencer a consciência cuidadosa de Solé.

No último domingo Marcio Belo e Solé tocaram juntos no show de Genésio Tocantins na feira do bosque em Palmas e depois do espetáculo foram conferir a identidade canina e afetiva do animal.

Quando Pelé viu Marcio Belo se mijou todo. Latia, pulava e gania e se arrastava pelo chão. Marcio pegou o bicho e ele fez o corpo durinho, exatamente como fazia Pelé quando Marcio o levantava com as duas mãos, segurando sob as patas dianteiras. Conferiu a mancha branca no rabo e afobado telefonou pra mãe em Porto Nacional, onde hoje mora. Mãe! Encontrei o Pelé, mãe, ele voltou pra casa do Solé depois de todos esses anos! Peguei ele no colo e ele ficou durinho daquele jeito. Do outro lado da linha a mãe de Marcio se desmanchou em lágrimas.

O cão e seu dono partiram de volta para casa. Marcio Belo se despediu de Maria, Ramiro e Solé com olhos de quem percebera um toque da plenitude.

Solé olhou suave pra Maria, acariciou os cabelos de Ramiro, foi para a rede e acendeu o porronca. Matutou que na vida de um cão, três anos correspondiam a quinze no calendário biológico dos humanos. Enquanto decifrava imagens na fumaça bruxuleante do cigarro, a cachorrinha Bibi deitou-se a seu lado, pôs a barriguinha pra cima e deixou ver as maminhas crescidas e inchadas. Estava prenha. Pelé driblou o tempo, driblou a distância e marcou o gol. Esse Pelé é demais! – pensou Solé.

Alexandre Acampora

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