Os amigos de nossos gatos

Julgar gatos como se fossem gente

Eu gosto de gatos, sou apaixonada por eles, por serem seres, com certeza, superiores. Há mais ou menos um ano, depois de mudar-me de um apartamento na capital para uma casa no interior, por questão de espaço e tempo, resolvi fazer algo que sempre fiz desde criança, ajudar animais que estão abandonados. Nesse ímpeto, primeiro apareceu Mel, uma linda gata branca, peluda, fofa, delicada e muito sensível, do tipo que se chegar alguém perto quando ela está alimentando-se, simplesmente para e aguarda a pessoa se afastar, por uma questão de etiqueta, acho eu. Uma linda e rebolante senhora, alva como uma nuvem em um céu ensolarado, que reinava na casa, com todas as atenções e carinhos que uma gata de tão nobre estirpe merecia, estava manca; ainda era filhote, foi recuperando-se enquanto tentávamos achar o dono, por não crer que uma gata tão linda tivesse sido abandonada. Ela porém foi ficando, ficando, o dono nunca apareceu e ela foi sendo incorporada à rotina da casa, sempre muito suave e educada. Já adulta, nunca havia entrado em cio ou ficado prenhe. Achávamos que ela seria castrada. Mel já deveria ter mais de um ano quando meu filho me liga chorando da escola que tinha uma gatinha preta, sendo torturada por adolescentes, que ele tinha tentando salvá-la, porém a diretora da escola havia dito que ela seria encaminhada para ser sacrificada caso não tirassem ela da escola naquela mesma tarde. Saio do trabalho e vou correndo até a escola para resgatar a gatinha. Ao chegar, deparo-me com um grupo de crianças dando "Doritos" para a gata, que comia com avidez. Assustada, muito feia, toda preta, com a ponta dos pelos marrom pela desnutrição evidente. Levo-a da escola diretamente para o veterinário para ver o que podíamos fazer pela gata, ainda de pequena estatura, uma filhotona em más condições. Depois de ser desverminada, limpa e alimentada o veterinário me informa que a gata preta está prenhe, que ainda irá demorar algum tempo, mas que com certeza está esperando gatinhos. Prescreve vitaminas para a gestante, orienta dar ração de filhotes porque tem mais valor nutritivo e vamos para casa. Ao chegar em casa apresentamos Mel a gatinha preta, que as crianças haviam colocado o nome de Lady, mas parecia até ironia que pelo comportamento, pois a gata era faminta, avançava na ração, subia em cima da mesa, coisa que Mel jamais havia feito, não respeitava nada nem ninguém. A rejeição foi total e instantânea, Mel detestou aquela gata selvagem e mal educada. Como protesto não entrava mais dentro de casa e fez greve de fome, negando-se a comer com animal portador de tamanha falta de educação. Assim foi por um tempo. As crianças e meu marido não gostavam da gata preta, por ser selvagem, enxerida, espaçosa e por ter afastado nossa pluminha branca de casa. Com o tratamento com as vitaminas, Lady se tornou uma bela gata preta de olhos amarelos, pequena é verdade, mas longilínia, elegante, como uma rainha sudanesa, forte, esperta e ágil, com uma barriga cada vez maior. Aos poucos, Mel começou a aproximar-se novamente e ao mesmo tempo, Lady foi ficando menos selvagem, menos ávida, mais calma. Deu cria a cinco gatinhos, muito saudáveis e fofos. Com a chegada da ninhada, Mel começou a aproximar-se mais ainda da casa, foi chegando perto dos filhotes acabando por ter uma convivência pacífica com os filhotes e com a já menos selvagem, Lady. Para nossa surpresa, enquanto aguardávamos que ela parasse de amamentar para ser castrada, pois acabamos por ter que ficar com quatro dos cinco filhotes, algumas vezes flagramos Mel lambendo-os. Ficamos com pena por ela ser estéril e não poder ter filhos. Algum tempo depois, Lady aparece prenhe novamente. Com certeza foram as incursões de Charles Bronson, o gato tigrado cheio de cicatrizes que foi visto furtivamente em horários escusos rondando a casa que fizeram com que Lady, novamente, desse o mal passo, pois ela não saía nunca com a ninhada ao lado. Ficamos pasmos, pois os outros filhotes ainda mamavam quando a barriga começou a crescer. Levamos ao veterinário para castrar e ficamos sabendo que já era adiantada a gestação e não tive coragem de operá-la neste estado. Como antes, vitaminas e paciência. Mas surpresa mesmo foi quando na mesma noite que Lady resolve dar cria à sete gatinhos absolutamente pretos, Mel, que nem sabíamos que estava prenhe, pois há mais de ano com a gente nunca foi vista em atitude suspeita com nenhum gato escondia os frutos da sedução felina na volumosa pelagem, resolve dar cria dentro meu do guarda roupa a dois filhotes fofos e peludos. Lady estava em um quarto da despensa, em um cesto em um lugar protegido da luz, entre um armário e a parede. Ela mesma havia escolhido o lugar, apenas o forramos para que ela tivesse mais conforto. Decido, por achar Mel muito frágil, deixá-la no quarto adjacente ao meu, que uso como escritório. Desocupo uma das últimas prateleiras e acomodo Mel e seus dois filhotes, deixo Lady da despensa com seus 6 filhotes. Passados dois dias, surpreendo Lady inspecionando o local onde a Mel está, cheirando os filhotes, olhando o lugar, observo-a com certo receio, pois não sei como é o comportamento de uma gata com outra gata também com cria. Lady, depois de andar muito pelo lugar, inspecionar toda a peça, sai e retorna com um filhote na boca, colocando-o no meio de papéis que estavam na prateleira ao lado. Pensei, "pobre gata preta, está sentindo ciúme, quer ficar também aqui perto, acha que estou dando mais atenção para Mel". Ainda me questionei se gatos poderiam ter estes sentimentos assim intensos como ciúme, mas era tão evidente a atitude dela que eu fiquei certa de que era ciumeira mesmo da gata preterida que estava no quarto dos fundos. Com cuidado, recolho o filhote e o devolvo novamente da despensa, fecho a porta, mando ela se sossegar e volto para meu quarto. Minutos depois ela volta e deixa um filhote na porta do escritório, senta-se e fica me olhando, com o filhote miando no chão frio, coloco novamente o filhote no berço, fecho a porta do meu quarto. Meio minuto depois ouço o miado fino do filhote na porta do meu quarto. Desisto, deixo ela entrar, ela coloca novamente o filhote na prateleira ao lado da Mel, que assustada resolve sair do ninho e verificar o que estava acontecendo: ela cheira o filhote alheio e volta para cuidar dos seus, não parecendo muito incomodada. Decido esvaziar a outra prateleira, forro-a. Um a um, a gata preta transfere todos os filhotes. Mel observa sem muito interesse, estava mais atenta em lamber os seus, que por serem mais peludos, minha filha dizia que são penteadinhos, em comparação aos pretos de pelo curto e espetado da Lady. Fico um pouco receosa, pois afinal é muito estranho o comportamento da Lady, insistentemente trazendo os gatos para perto da outra. Fico pensando do que seria capaz uma gata com ciúme, sinto-me um pouco insegura de deixa-la junto com a minha frágil gatinha branca, mas é muito tarde, cerca de três horas da manhã e estou com muito sono, decido ir dormir e ver no que vai dar.  Nem bem pego no sono, acordo assustada com Mel miando alto em cima da minha cama. Tomo um susto, a primeira coisa que penso é que a gata preta fez algo para a ninhada movida por um ciúme felino doentio, fico em pânico pensando no que diria para as crianças quando viessem ver os gatos. Imaginei filhotinhos dilacerados, disparou meu coração. Mel, voltando-se em direção ao escritório tentando falar comigo em gatalês, emite alto vários "pru, turrél, prél, pru" o que me deixa muito triste, pois com certeza ela queria me contar alguma atrocidade cruel da selvagem Lady. Apreensiva, sob a insistência da gata, vou em direção à porta do escritório, abro-a e, para minha surpresa, Lady deitada em seu ninho, com seus seis filhotes e mais os dois filhotes da Mel, sãos e salvos, pendurados em suas tetas, enquanto os seus filhotes dormiam. Então Mel, bem faceira, pula para dentro da mesma porta da gata preta acabando por acordar os filhotinhos pretos; acomoda-se, vira-se de barriga para cima e começa a amamentar os filhotinhos da comadre Lady. Mais uma vez, olha para mim e mais "pru, perrél, prél turrú" que em gatalês, com certeza, deve ser "resolvemos os problemas de amamentação dos filhotes".

           

Desde então elas se revezam na tarefa de cuidar da ninhada, dormem juntas, com uma solidariedade rara de se ver em gente. Desde então prometi a mim mesma não mais projetar sentimentos humanos nos meus felinos, melhores do que muitos de nós, animais racionais.

Ana Laura Kosby