Manhã de domingo começa tarde.
Noite mal dormida por causa da gripe, acordo com o corpo dolorido e o nariz escorrendo. Se não tivesse combinado um chat às 11 da madrugada com meu amigo surdo-mudo (essa é nossa maneira tradicional de conversar) não teria levantado. Cheguei atrasada, 11:15, ele não estava. Deixo recado que vou buscá-lo em casa às 16 horas conforme combinado e começo meu passeio pela NET.

Me deparo, num link, com  o site da Casa das Rosas, espaço cultural de São Paulo e perco a noção das horas. Mil poemas visuais, já começo a minhocar, querendo criar. Enquanto passeio crio mentalmente os quadros que prometi para uma exposição de fim de ano. Aos poucos vão
me surgindo também idéias para o site de poesias eróticas ilustradas, projeto que pretendo começar ainda esse ano. Imagens-ação, a linguagem internáutica permite tudo.

Palavras, meu site de citações, já não me satisfaz artisticamente. Pela quantidade de frases tive que deixar a arte um pouco de lado, se não o site se tornaria insuportavelmente lento e Palavras é um site para a massa. Oitocentas visitas semanais, não pode ser difícil de
digerir, o publico-alvo exige mais conteúdo que beleza. Poemas visuais seria uma idéia interessante, um site artístico para poucos.

Enquanto minha cabeça gira (mezzo pelas idéias mezzo por causa da gripe), o estômago resolve reclamar de fome. Duas e meia da tarde e só tomei meio copo de refresco de carambola, mesmo assim só para conseguir engolir os comprimidos. O gato também não me deixa esquecer: mia insistentemente, enroscado entre minhas pernas.

Desligo da Net e resolvo fazer uma sopinha. Enquanto misturo os ingredientes a mente voa, pensando nas imagens em Java para acompanhar os curtos poemas. De repente, um miado. O suicida está pendurado do lado de fora do batente da janela, e estamos no décimo terceiro andar. Não é a primeira vez que ele resolve ver o mundo pelo lado de fora da janela. Fica horas, às vezes, miando para os passarinhos e helicópteros. Meu medo é que resolva caçar alguma borboleta e se esborrache no térreo. Olho para baixo e vejo sua caixa de areia cheia de merda, o potinho de comida vazio e a água suja.

Xingo o Ervilha (meu filho, dono do gato) até a décima quinta geração por ter saído de casa sem cumprir com suas obrigações e largo a sopinha pra cuidar do gato antes que ele se atire. Limpo a caixa de areia, embrulhando as pedrinhas cheias de cocô num jornal velho e depois num saco plástico, e quando vou jogar o pacote no lixo passo pela panela e vejo a sopa grudando no fundo. Largo a merda no chão e lavo as mãos para mexer  a sopa. O gato se enrosca entre minhas pernas me fazendo perder o equilíbrio (já precário).

Largo a sopa, pego a merda embrulhada em jornal e abro a porta da cozinha para jogar o embrulho no lixão. O gato passa entre minhas pernas e sai, subindo as escadas enquanto eu me livro do pacote desagradável. Ainda de camisola subo as escadas atras dele. Claro, ele é mais rápido. Me lembro da sopa e volto correndo, chamando pelo bichano. Obviamente ele não vem. Deve estar rindo de mim. Lavo as mãos  de novo e mexo a panela. O gato mia da porta. Largo a colher de pau e corro para chutá-lo para dentro de casa. Ele se abandona aos meus pés, pensando que os chutes são carinho (ele adora um cafupé — cafuné com os pés). Fecho a porta depressa e volto para a panela. Ouço então o barulho de celofane característico do pacote de biscoito de sequilho. Sim, é ele, assaltando os biscoitinhos, de cima do armário da cozinha. Dou um grito zangada e ele me olha com aquela cara de quem sabe que fez coisa errada, e continua comendo os biscoitos. Abro a geladeira e pego o restinho de comida para gatos e coloco no potinho dele. Aproveito para colocar mais areia na caixa de merda dele, que me olha com muito interesse. Assim que despejo a caixa no chão volto para minha sopa —  que a essas alturas já grudou no fundo da panela — e vejo que o gato já estreou a nova areia limpinha. Desligo o fogo e coloco parte do conteúdo numa caneca — é assim que tomo sopa, de caneca  — e volto para o micro, inspirada para escrever essa crônica. Só me distraio com o barulho do gato rasgando os jornais da semana, que se acumulam numa cesta até que eu resolva joga-los fora. Acha, afinal, o que procurava. Lá embaixo um osso de coxa de galinha, que ele escondera antes de colocarmos por cima o jornal de domingo. Volta para a cozinha desviando do caminho para roçar entre minhas pernas enquanto eu escrevo. Dez minutos depois, o silêncio me preocupa. Vou ver e lá está ele, de novo do lado de fora da janela, osso na boca, olhando passarinhos (ou serão borboletas?). Bolas, que se suicide o bichano!

Lea Waidergom Storch