O Ano do gato
     "No horóscopo chinês, 1999 valoriza a percepção e já começa com um pêlo curto brasileiro virando selo
  Romeo nem precisa ter sete vidas. Uma só já está bom à beça. O bigodudo, morador de   Ipanema e com quase dois anos de praia, está com tudo. E, em se tratando de um gato, todo prosa. Romeo of Poems Cat's House, 30 e poucos centímetros do focinho à cauda, é um legítimo Pêlo Curto Brasileiro - hoje, primo distante do bom e velho vira-lata e única raça de gatos genuinamente brasileira. Um campeão que já arranhou  muitos prêmios e que, ano passado, foi recebido com pompa e circunstância numa exposição no Madison Square Garden. Deu entrevista, foi a coquetel, desfilou compinta de astro hollywoodiano. Um gatão.

E agora será imortalizado por muitas e muitas vidas. Romeo of Poems acaba de virar selo. Ele é o primeiro gato a entrar para a galeria filatélica da ECT, e sua foto está impressa na cartela da Série Raças Brasileiras, vendida a R$ 2,20 nas agências dos correios. "Foi uma negociação demorada", comemora, em nome de Romeo, sua dona, a  criadora Sylvia Roriz, que batalhou por quatro anos para que um de seus bichanos constasse das séries de selos da empresa.

Sylvia faz parte de uma ninhada de gatófilos que vem se reproduzindo a uma  velocidade impressionante. Uma geração que tem como crias o novelista Aguinaldo Silva, os escritores Ruy Castro, Heloísa Seixas e Sonia Hirsch, a psicanalista Nise da Silveira e a atriz Tatiana Issa. "Vou deixar tudo o que tenho para meu gato. E nomear um tutor", brinca Aguinaldo, que divide o apartamento com Tadeu, um siamês tinhoso. "Já sou avó. Zucchero acaba de casar e ter filhos", comemora Tatiana, uma  gata dona de outro."Sou a favor do gato vira-lata. Até porque o brasileiro, de modo geral, é meio vira-lata. Eu sou totalmente vira-lata", enfatiza Ruy Castro, ao lado de Píu, seu companheiro há 13 anos e membro de uma dinastia que começou com Bunda, o pai. "Apesar de viver de forma nababesca, Píu guarda a memória ancestral da vida de rua de seus antepassados. Tem a inteligência e a manemolência do vagabundo", diz Ruy, que ainda lastima a perda de Glorinha, no ano passado, de câncer. "Glorinha era paulista. Quando voltamos a morar no Rio e ela sentiu o cheiro do mar do Leblon pelaprimeira vez, ficou duas horas estática, com o nariz farejando a maresia", lembra.

Este felino curioso e cheio de mistérios está de novo na crista da onda. E dos astros. No horóscopo chinês, 1999 é o ano do Gato. "É um ano para se viver em harmonia. Tende para a busca de um olhar misterioso, propicia a vida perto da natureza, o convívio social, a vivacidade, a percepção", explica a astróloga e artista plástica.Martha Pires Ferreira, ela mesma uma apaixonada por gatos e dona da sábia Carolina. "O gato tem um outro sentido, uma percepção que nós não conseguimos alcançar", diz Martha, avisando que o ano do Gato - ou do Coelho, segundo algumas regiões da China, mas que guarda as mesmas características - vai do próximo dia 16 a 4 de fevereiro de 2000.

 É a percepção aguçada o que fascina a psicanalista Nise da Silveira, que no ano  passado lançou o livro Gatos, a emoção de lidar, publicado pela Léo Christiano Editorial, em que reflete sobre a relação homens e gatos. Partindo, claro, de seus 94 anos divididos com Carlinhos, Lorde Byron, Mafalda, Vivaldi, Miéle... "Para amar os gatos você precisa ser livre", diz a doutora Nise. "É muito difícil não só ser independente como lidar com uma criatura independente", completa. A escritora Sonia Hirsch, autora de Gatos (edição Hirsch & Mauad), concorda. "As pessoas fazem restrições ao sentimento de posse nas relações humanas mas é possessivo em relação ao seu animal. Não entende que o gato não compactue desse sentimento", diz a dona de Taichi, Taichinha e Bilili, e uma sábia na linguagem felina.

Mas não importa a língua. Gato é sempre crunhau em siamês. Mas também pode serqatto em aramaico, kattos em grego, kadista em núbio, qett em árabe e gatto, cat, katze, kac, chat nas línguas modernas. Misterioso, preguiçoso, glutão, o gato já foi venerado como divindade, queimado como feiticeiro e desprezado por ardentes donos de cães. "Estamos presenciando agora um novo ciclo de relacionamento do homem com o gato", atesta a médica veterinária Heloísa Justen, que desenvolve um trabalho junto à única clínica exclusiva para gatos da cidade. A Gatos & Gatos, na Ilha do Governador, é felina dos pés à cabeça: da decoração à equipe, formada por médicos especializados em felinos e que prestam um atendimento sem estresse para os animais  — e seus donos. Nada de latidos ao lado de miados. "Erradamente, por muito tempo o gato foi tratado como um pequeno cão", lastima a doutora Heloísa, professora-assistente de Patologia Clínica-cirúrgica e de Clínica e Cirurgia de Felinos  da Universidade Rural. Mas, mais do que isso, uma gatófila assumidíssima. "Pode-se conhecer um gato ao se conhecer o dono do gato. O comportamento do animal depende da capacidade do dono em interagir com ele", diz a doutora Heloísa.

Disso o siamês Tadeu tem certeza. A dedicação do autor de Suave veneno é total."Gato é que nem namorado, não se pode dividir a atenção", sentencia Aguinaldo Silva. E Tadeu aproveita. Faz birra, malcriação. Arranha a porta do quarto do dono e faz xixi no escritório se é contrariado. E ainda tira uma onda, já que é o único a saber os rumos da novela das oito com antecedência.

Outro gato acostumado aos refletores é um parente gringo do Pêlo Curto Brasileiro, o gato Kaiser Arvo Off Syarte, da raça American Shorthair. Apesar do pedigreepomposo, Kaiser é mais conhecido como o boa-vida Muvucat, gato da Muvuca de Regina Casé. Muvucat tem uma madrinha que todo marmanjo daria um bigode para ter: a atriz Ana Paula Arósio, que foi quem deu de presente o peludo para Regina. Hoje, o talzinho tem a vida que pediu a Bastet. Passa os dias estatelado na janela do casarão do Humaitá. "Ele chegou desconfiado, vivia chorando, era um chatinho. Hoje está cheio de confiança", conta Ana Gabriela, dublê de produtora do programa e ama-seca.

Uns com tanto, outros com tão pouco. Muvucat leva uma vida bem diferente da dos gatos de rua, uma preocupação constante da Sociedade União Internacional Protetora dos Animais, a Suipa. "Embora não haja uma estimativa precisa, pode-se dizer que para cada cão abandonado existem pelo menos dois gatos na rua", diz a presidente da  Suipa, Izabel Cristina Nascimento. Para ela, a solução é a esterilização. "As pessoas acham uma maldade castrar os gatos. Mas muito mais cruel é abandonar o animal. A reprodução é inevitável e em grande velocidade", avisa. Izabel sabe do que estáfalando. A entidade, que eventualmente (por falta de verbas) faz incursões a favelas e  comunidades carentes, atendeu, num só dia, a 590 animais na Cidade de Deus há dois anos. Mantida por sócios voluntários, a Suipa mantém atualmente cerca de 3 mil cães, mil gatos, quatro cavalos e o bode Dudu, recolhido de um despacho de macumba há alguns anos.

Mimado ou abandonado, gatos são sempre gatos, e defendem quase os mesmos adjetivos. É uma máquina de caçar que se mantém com as mesmas características há 32 milhões de anos. Que formam uma população de 68 milhões de gatos nos Estados Unidos e 42 milhões na Europa. Um olhudo que enxerga num campo de visão de 287 graus e é capaz de emitir quase 50 fonemas. Um pernalta que chega a correr a 48 km/h  mas que pode dormir 16 horas por dia. Que percebe vibrações auditivas que escapam ao ouvido humano. Foi, aliás, estudando o funcionamento das vibrações felinas que ohomem inventou o radar. Está na hora de prestar mais atenção aos bigodudos".