ELA

Ela chegou sem que eu quisesse. Fui contrária à sua presença, reclamei com minha filha por tê-la trazido para nosso apartamento. Foram dias sem dormir direito com seu miado choroso pelas madrugadas. Fiquei ansiosa pelo rastro de destruição que deixava nas poltronas, arranhões nos móveis, alguns nas minhas pernas... E o trabalho quotidiano de limpeza dos dejetos, forçando-me a um exercício ze n-budista de humildade, de autoconvencimento, qualquer tarefa é digna, etc.etc.... Tive pequenos ataques semi-histéricos ao me ver obrigada a instalar telas em todas as janelas, nos mínimos espaços livres, eu agora enjaulada em minha própria casa, a paisagem tão linda irremediavelmente fragmentada. Deixei de fazer viagens que tanto me compraziam por um terrível sentimento de culpa de deixá-la sozinha. Culminância do desespero: minha filha casou-se, mudou-se e deixou-as comigo – sim, deixou-as, no plural, porque um ano após a indesejada chegada daquele serzinho, a filha resolveu arranjar uma companheirinha para ele, e eu, desprovida da mais elementar dose de racionalidade, onde estava eu naquele momento, cedi, acedi.

O mais estranho de tudo é que aquela pequena criatura que eu rejeitara foi, pouco a pouco, de maneira silenciosamente macia, ocupando espaços fora e dentro de mim. Com meu assentimento, o lar ficando cada vez mais dela que meu. Eu morando com ela. Seus, o melhor lugar do sofá, meu primeiro ainda sonolento afago matinal, meu bom-dia transformado em dia bom ainda que chovesse. Sua, a página do jornal ocupada pelo corpo espaçosamente atrevido impedindo a leitura dos fatos mais importantes. Conquistado como reino próprio foi o dicionário, local de seus sonhos destituídos de vocábulos. E o computador escalado como opção de zona de descanso quentinha e diferenciada. E uma cauda languidamente impedindo parte da visão da tv. E o alto do guarda-roupa tornado trapézio, o susto de um salto ousado sem rede, a elegância de um desenho riscado no ar. Ah minhas pernas disputadas de madrugada na cama por ela e sua amiguinha como território privilegiado para o sono.

O mais inesperado ainda ocorreu, quando eu não havia tomado consciência de minha entrega total. Naquelas horas nobres da noite, as da alienação consentida e benfazeja, quando assistir à novela é um direito inalienável de quem manda às favas qualquer compromisso com a seriedade e se entrega ao prazer de ser você mesma em seu desejo, nua em seu pijama velho, naqueles momentos de paz cósmica, ela tantas vezes saía de sua altivez, diria de um certo ar blasé que a mantinha quase sempre a uma certa distância solene e orgulhosa, rainha sem coroa, e acomodava-se, súbita, súdita, em meu colo, motorzinho ligado tangenciando sutis cordas em minha mão. Certo dia, exatamente num instante como aqueles, fora de meus cuidados, compreendi que o amor total pode ter formas antes impensáveis, ser afeto profundo de finos bigodes, carícia quente de focinho frio, eu te amo expresso em língua de ronrom.

Mas o mais misterioso ainda aconteceu. Sem esperar, ela se foi sem que eu quisesse. Fui contrária à sua ausência. Reclamei com a vida por ter-nos tirado um naco de felicidade simples, de despojado luxo. Deixei escorrer de mim quase num sem-fim as dores da perda sem represa, garras afiadas de saudade arranhando a barriga, água salgada vertendo incontida, tristezura tão funda miando noites e dias no peito. Fica o consolo de lhe termos ofertado carinho para levar na viagem. Consolo de ter recebido seu adeus de rainha tão digna e súdita da doença e da morte como o foi da saúde e da vida. De maneira silenciosamente macia, a saudade ocupa agora espaços fora e dentro, tem corpo de gata.

Rio de Janeiro, 6 de março de 2009.
Em memória da Senhorita Cleo, que agora ronrona no céu dos gatinhos.

Lena Jesus Ponte