O Conceito de Marginalidade Poética em 3 poemas de Leila Míccolis

Prof. Dr. Jayro Luna

Leila Míccolis tem sido uma das mais atuantes poetisas (ainda uso essa palavra, meio em desuso, atualmente se usa poeta nos dois gêneros, não gosto, acho “poetisa” mais sonora) da literatura contemporânea brasileira, notadamente da chamada poesia marginal que se desenvolveu a partir dos anos 70 do século XX. Não pretendo aqui fazer um levantamento da fortuna crítica da autora ou tampouco fazer um panorama da sua vasta produção poética que para tal função meu texto não seria mais do que laudatório e pouco acrescentaria ao que já disseram pessoas como Ignácio de Loyola Brandão, Heloísa Buarque de Hollanda, Nélida Piñon, Gilberto Mendonça Teles e outros. Escrevo porque quero comentar três poemas de Leila que me chamaram a atenção nesse momento devido ao tema que muito me acorre que é a condição da marginalidade poética na literatura brasileira contemporânea. Eu, que sou poeta marginal, recusado por inúmeras editoras e críticos, sei bem o que isso significa. Existem, ao que me parece, duas condições da marginalidade, a optada e a imposta. Na optada, o autor escolhe ser marginal, conscientemente, decidido por ela, como forma pessoa de protesto diante do sistema político, cultural, social ou mais estritamente, se for o caso, o editorial. A segunda é a imposta, em que o autor embora queira o reconhecimento editorial e crítico pouco consegue e é excluído, no geral das vezes, mais pela incapacidade do meio em compreender sua obra, do que por incapacidade do autor em compreender seu meio. E para concluir essa breve explanação conceitual, observo ainda que as duas formas são complementares e não raras vezes um poeta marginal passa pelos dois momentos.

No poema “Geração Inde(x)pendente” temos uma visão da poetisa acerca dessa condição marginal.

Geração Inde(x)pendente

Em vez de me deitar na cama,
resolvi criar fama.
E aí comecei a fazer versos, a mendigar editores,
como se eles fizessem grandes favores
em nos publicar...
E de tanto batalhar, virei... poeta
— um grande passo em minha meta,
porque em poetisa todo mundo pisa.
E quando me consideraram menina prodígio,
consegui que um crítico de prestígio
analisasse minha papelada.
Ele deu uma boa folheada,
pensou, pesou e sentenciou:
— "Incrível... não tem nível..."
Juro que fiquei com muita mágoa
porque, afinal, quem precisa de nível
é caixa d'água...

O poema faz parte do livro Sangue Cenográfico (1997). O título já guarda uma ambigüidade provocante, aquele “X” entre parênteses sugere em eco a palavra “Index” de “Index Prohibitorum”, que continha a lista dos livros proibidos pela Inquisição na Idade Média.

Os dois primeiros versos (“Em vez de me deitar na cama / resolvi criar fama”) falam da luta da poetisa diante da condição feminina na sociedade de caráter machista e misógino. Este desejo de fama (pela literatura, já expressa a condição da marginalidade aqui colocada inicialmente, a marginalidade imposta) esbarra nos editores (“comecei a mendigar editores”). Essa luta pelo reconhecimento, luta vã, transforma a autora em “poeta”. Leila compõe a seguir uma oposição entre as palavras “poeta” e “poetisa”, numa bela sacada da sonoridade das palavras, Leila aponta a existência de “pisa” anagramaticamente em “poetisa”, sendo pois, mais do que uma rima, é a identificação, a analogia entre ambas as palavras em termos conceituais. Já “poeta” rima com “meta” e a “meta” a ser alcançada é a fama (reconhecimento). Tendo alcançado algum prestígio, nem tanto pela obra em si, o que deixa a “poeta” um tanto quanto chateada, uma vez que a sua obra tem méritos, mas a crítica observa apenas a ousadia da “menina prodígio” que recusa o seu destino traçado pelo mundo diante da sua condição feminina (o de deitar na cama), ela resolve mostrar seus papéis a um “crítico de prestígio / que analisasse minha papelada”. A palavra “papelada” conota uma ironia diante da produção da poeta, uma vez que ela não escreve “meus livros” ou “meus poemas”, mas “minha papelada”. A análise do “crítico de prestígio” é contundente: “Incrível... Não tem nível...”. Para se chegar a essa conclusão o processo crítico foi o de dar “uma boa folheada”, isto não é propriamente ler, mas desler ou não-ler, após o que ele “pensou, pesou e sentenciou”. Notemos a quase identidade sonora entre “pensou” e “pesou”. O que o crítico pensou não foi sobre o conteúdo dos poemas, uma vez que ele não leu, mas deu uma “boa folheada” e, portanto, o que ele “pensou” foi acerca do “peso” da “papelada”, assim a sua afirmação de que a obra “não tem nível” refere-se mais ao aspecto físico do conjunto de papéis do que do conteúdo da obra. Por outro lado, a sentença inquisitorial do crítico aponta para a condição da poesia anti-canônica de Leila Míccolis. Em resposta a poeta conclui que “quem precisa de nível é caixa d'água”, que rima com “mágoa” do verso anterior. A ironia da conclusão, a blague desconstrói o discurso do crítico diante de seu ato de antileitura.

Nesse “Geração Inde(x)pendente” o ritmo é cadenciado por uma seqüência de rimas, em geral, emparelhadas, ou quando não, são internas como em “pensou, pesou e sentenciou” ou, noutro exemplo, “em nos publicar.../ E de tanto batalhar... virei poeta”. No poema o caso particular é um exemplo para a condição geral dos poetas marginais, com esse efeito retórico, do particular pelo geral, Leila Míccolis consegue o humor pela apresentação da cena num tom de cotidianeidade que, no entanto, revela as incongruências do sistema.

Noutro poema, “Nova Inquisição” temos o tratamento da marginalidade imposta como resultado de um processo deliberado de exclusão das obras que podem questionar essa realidade cotidiana:

 

Nova Inquisição

 

Minha fama é negra,
sou mau elemento;
censurarão meus versos
pra servir de exemplo?

 

O pequeno poema é do mesmo livro Sangue Cenográfico (1997) e a questão da fama agora tem outro aspecto, o de ser “negra”. Isto é a poeta agora vive sua condição de marginalidade plenamente, reconhece-se como “mau elemento”, expressão característica do jargão policialesco. A “censura” não se refere apenas àquela de caráter velado do período da ditadura nos idos das décadas de 60 e 70, mas à outra, também funesta, que envolve deliberadamente todo o sistema editorial e de produção de bens culturais da sociedade capitalista. “Censurarão meus versos / pra servir de exemplo?”, a poeta, na condição de marginal (“mau elemento”) será mártir assim numa analogia a Cristo ou a Tiradentes, com a diferença que essa “Nova Inquisição” vê como pecado, bruxaria, a obra que é subversiva por questionar a realidade da existência dessa própria “Nova Inquisição”.

O poema, breve, uma quadra de versos híbridos (dois hexassílabos e dois pentassílabos) com a sutileza das rimas toantes (nEgra / vErsos; ElEmENtO / ExEMplO) tem um ritmo ligeiro como é característico da poesia marginal em que a velocidade rítmica se interpõe como elemento de flash do cotidiano, mas com o contraste da mensagem abrupta, corrosiva.

O terceiro poema é “Pessoal e Intransferível”:

 

Pessoal e Intransferível

Chegou a “Pequena Notável”,
de bolso, sou descartável;
mas não se deixe enganar
com o que eu posso aparentar:
se nos frascos pequeninos
há os perfumes mais finos,
é também neles que vemos
os mais terríveis venenos...
Não tenho nenhum complexo,
transo tudo, até em sexo,
eu gosto de ser assim,
ninguém esquece de mim...
Gasto pouco com feijão,
com roupa, e na condução,
— se o trocador não bronqueia —,
eu às vezes pago meia...
Por fim, tenho outra vantagem:
eu caibo em qualquer bagagem.
E quem se atreve e se enleva
vê que sou leve e me leva...
Assim, por mais que eu ande,
com minha miudez eu venho sempre a aprender
que ninguém precisa ser gente grande.
Precisa é SER!

Outro poema do livro Sangue Cenográfico (1997). O título faz uma citação a Torquato Neto que em 14/9/71 escrevia na sua breve coluna (“Geléia Geral”) no jornal um texto com o título “Pessoal Intransferível” em que se lê entre outras coisas virulentas, frases como: “Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia”.

O poema de Leila se inicia pela citação do epíteto de “pequena notável”, notemos que esse epíteto é uma das marcas de Carmem Miranda. Aqui o epíteto ganha muito em ironia, pois Carmem Miranda que era portuguesa de nascimento, foi uma das cantoras de maiores sucessos no Brasil e que galgou reconhecimento no exterior de forma ainda insuperável entre artistas brasileiros. Leila Míccolis, em contrapartida, com a “mágoa” causada pelo “crítico de prestígio” percebe que o que ela compactua com a cantora é apenas um dado do aspecto físico: o seu tamanho. Mas é justamente esse “tamanho” que a faz grande em sendo pequena. Através duma série de frases de efeito coloquial, Leila vai compondo um poema em que o ritmo ligeiro surpreende a morosidade da mente e somos levados no embalo do mesmo modo que os sambas de Carmem Miranda e o Bando da Lua faziam todos dançar. No poema de Leila Míccolis é o efeito da melopéia, a musicalidade das palavras que faz a analogia com o ritmo musical fundado em versos de redondilha maior, bem ao gosto popular. Mas algumas rimas desconcertantes pelo conteúdo e ao mesmo tempo pela simplicidade rímica como “sexo” / “complexo” ou “vemos” / “venenos” vão desconstruindo a imagem de ingenuidade pela de rebeldia e irreverência.

Nos três últimos versos temos uma alteração rítmica, como uma quebra, preparando o gran finale . Dois versos grandes, um dodecassílabo (“com minha miudez eu venho sempre a aprender”) e um decassílabo (“que ninguém precisa ser gente grande.”) preparam o verso final: “Preciso é SER!”

O “ser” num sentido filosófico, existencialista, se opõe à “grandeza” enquanto esta é resultado dum falso “ser”, fundado apenas na aparência.

O que se torna marginal no poema é assim a própria vida e o que se torna status quo é a aparência do ser. Desse modo, em Leila Míccolis, a condição da marginalidade poética é também metáfora da condição da marginalidade do indivíduo na sociedade brasileira.