UMA ANISTIA QUE NÃO SE ESQUECE – A POESIA POLÍTICA DE LEILA MÍCCOLIS

Prof. Ms. Daniella Bertocchi
(UFES)

A ditadura está de volta. Com ela, os marginais também voltaram à cena. Com a criação em 2011 das Comissões da Verdade, o Brasil revisita uma das mais sofridas épocas de sua história. Caminhando paralelamente à rememoração das torturas e à busca por informações dos desaparecidos políticos, está a poesia produzida nesse período. Somente este ano, tivemos a publicação de poemas de dois importantes escritores da geração dos anos 1970: Paulo Leminski, com o livro Toda poesia , e também a antologia Desfamiliares de Leila Míccolis.

Mas qual a importância nos dias de hoje de escritores que produziram uma poesia que esteve à margem da literatura oficial? O que há ainda de novo a ser descoberto nesses poemas? Por que ler, estudar, analisar poemas que falam de uma época que – aparentemente – já acabou e que – com certeza – não se quer novamente? Qual a relevância do que foi produzido nas décadas de 1960 e 70 para a atualidade? Penso que a resposta a essas perguntas e a muitas outras não é simples, muito menos óbvia, mas pode ser pensada tomando por base vários escritos sobre a função da literatura na sociedade. Renato Franco, em livro organizado por Márcio Seligmann-Silva ( História, Memória, Literatura – 2003), nos lembra que

             As obras de arte participam da sociedade e, nessa medida, da barbárie, pois esta não foi ainda superada: uma sociedade que permitiu o aniquilamento planejado de multidões afeta, como uma mancha indelével, toda configuração estética e converte em escárnio a obra que finge não ouvir o grito de horror dos massacrados. (2003, p. 352)

Renato Franco ainda recorda que a literatura tem como função

             A de lutar contra o esquecimento e contra o recalque, isto é, lutar contra a repetição da catástrofe por meio da rememoração do acontecido. (2003, p. 352)

Dentro desse ponto de vista, temos a justificativa tanto para produção de poesia que relembre o ocorrido no período ditatorial quanto para a volta dessa poesia nos dias de hoje. Leila Míccolis, Paulo Leminski, Glauco Mattoso são oriundos dos anos de chumbo do país e hoje talvez poderiam ser incluídos em um cânone literário. Eles, em maior ou menor grau, estiveram em contato com a ditadura e com a censura às artes em geral e produziram seus escritos influenciados direta ou indiretamente pela situação política do país. Como foi muito bem colocado por Steven Uhly em seu artigo sobre a poesia de Paulo César Fonteles de Lima (¹), outro escritor que foi preso e torturado, “a leitura destas poesias é desagradável, quase dolorosa, e essa é justamente sua força literária. Estamos diante da descida ao inferno, que recebe sua coesão interna de verdade poética e, ao mesmo tempo, autobiográfica.”

Dentre os representantes da geração marginal, o assunto aqui é Leila Míccolis. A fim de situar os “desfamiliarizados” com a produção de Leila, vale lembrar que a autora nascida no Rio de Janeiro em 1947 produziu a maior parte de seus poemas entre as décadas de 1960 e 1990. Leila Míccolis começou a ter destaque quando apareceu no livro de Heloísa Buarque de Hollanda 26 poetas hoje , de 1975, em que a autora reúne alguns dos nomes da chamada poesia marginal. A obra completa de Leila foi reunida e publicada em 2013 no livro Desfamiliares .

Apesar de não ter sido presa, nem ter sofrido diretamente na pele as torturas impostas pelos militares, como o poeta Alex Polari, por exemplo, podemos afirmar que Leila Míccolis foi sim testemunha de uma época e de suas transformações ao longo de todo esse tempo. Em seu pioneiro artigo sobre Leila Míccolis e o testemunho, Wilberth Salgueiro (²) afirma que “espero pensar a obra de Leila Míccolis como paradigmática de parte da produção poética brasileira pós-64, seja pela abordagem obsessiva do lugar das minorias, seja pelos recursos formais utilizados, articulando, para tal empresa, a noção hegemônica (posto que múltipla) de ‘literatura de testemunho'”. Sua veia política nem sempre é a que nos salta aos olhos quando entramos em contato com seus poemas, mas seu lado ácido e crítico, ao contrário, está sempre presente para onde quer que olhemos. Wilberth Salgueiro comenta que “com Míccolis, reiterando um traço geracional, o humor insolente prevalece mesmo – e talvez por isso – nas piores situações de sufoco, tirania, barra pesada, vexame e angústia. Mais que a expressão do medo, típica da literatura gestada sob um imaginário do suplício físico, os versos de Leila trazem (sob a ótica, repita-se, hegemônica do tom bem-humorado) o espanto estampado”. Leila, com muito humor e ironia, examina os valores estabelecidos pela sociedade, em especial os que se referem às mulheres. Sua produção, entretanto, vai além de uma crítica feminista. Leila aborda assuntos diversos, com leveza e densidade. Ignácio de Loyola Brandão diz que Leila é “moderna e entende o poder corrosivo de cada palavra”. Há em sua obra poemas eróticos, pornográficos, infantis, feministas, de forte teor crítico e há aqueles ainda que mostram uma radical resistência em se adequar ao status quo . Ela resiste em se entregar à situação de mulher dona de casa, boa esposa, obediente e subalterna às vontades dos homens – maridos, patrões, adultos, brancos, ricos e que tais. É importante lembrar que grande parte da produção de Leila Míccolis aconteceu nos anos de chumbo da ditadura no Brasil, o que com certeza interferiu na elaboração de seus poemas.

Nessa direção, o poema “Anistia” será analisado à luz da teoria do testemunho, tendo como base a ideia de que a poesia de Leila é sim um testemunho das misérias e dores do cotidiano. O poema apareceu primeiramente em Respeitável público , livro publicado em 1980, e agora em Desfamiliares :

“Comungo da ira fraterna,
molho o dedo na lágrima benta,
e na saída da igreja
minha culpa expiarei:
darei esmolas ao homem
que torturei.”
(MÌCCOLIS,2012,p. 107)

A palavra que dá nome ao poema já é por si só bastante significativa. Anistia aqui pode ter dois sentidos. O da Anistia, na forma da lei 6.683, promulgada pelo presidente João Batista de Oliveira Figueiredo em 28 de agosto de 1979 e que foi concedida a todos aqueles que no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 haviam cometido crimes políticos ou conexos com estes. A Lei da Anistia voltou à baila recentemente, com os depoimentos dados à Comissão da Verdade, justamente porque essa lei chamada de “anistia de mão dupla” beneficiou tanto os presos políticos quanto os militares que participaram das torturas nos órgãos do governo. Hoje, mesmo depondo e confessando seus crimes nas sessões das comissões da verdade que acontecem pelo país, esses militares não podem ser julgados, muito menos condenados por seus crimes. Como bem nos lembra Edson Teles em seu artigo (³) quando fala em especial da situação dos desaparecidos, “a lei da anistia instituiu um atestado de paradeiro ignorado, de morte presumida, eximindo o Estado de apuração das circunstâncias e responsabilidades e mesmo do paradeiro dos corpos” (p. 585). Um outro significado possível para Anistia é o que aparece quando buscamos sua etimologia. A palavra vem do grego e significa “esquecimento”. Esquecer é o que se espera que o torturado faça. A fim de seguir adiante, continuar levando uma vida normal sem enlouquecer com tantas lembranças, espera-se que a vítima esqueça o que passou. Esse esquecimento foi incentivado pelo governo com a própria lei da Anistia. Uma vez perdoados os crimes políticos, o que se pede em troca é que o torturado ignore o passado. Nesse ponto, a arte vem a ser aliada da vítima. Ela, como dito no início do texto, é a responsável por não permitir que se esqueça. Em nenhum momento pode-se deixar de lado essa parte da história que deixou marcas tão profundas nos presos políticos, mas também em suas famílias, que sofreram junto com eles os horrores desse período. As sequelas estão em todos: torturados, pais, mães, filhos, companheiros, irmãos, amigos.

O poema de Leila Míccolis tem essa função. É um poema pequeno, de apenas uma estrofe, com seis versos. A metrificação dos versos é irregular e o poema apresenta rima em /e/ em quase todos, alternadas em expiarei / torturei e toante em fraterna / benta / igreja.

O 1º verso, “Comungo da ira fraterna”, nos situa no cenário do poema – a igreja (que vai ser explicitado no 3º verso). A autora não deixa de fazer sua crítica, mesmo correndo o risco de causar revolta entre os mais conservadores. É de conhecimento de todos que a Igreja desempenhou papel fundamental à época do golpe militar, desestabilizando o governo de João Goulart. A igreja católica temia que a simpatia de Jango pelo comunismo levasse o país a uma situação que não era interessante para eles. Com a “Marcha da família, com Deus, pela liberdade” em 1964 e que reuniu aproximadamente 500 mil pessoas, a Igreja mostrava todo seu repúdio ao então presidente e às suas ideias esquerdistas. Repúdio que era compartilhado por grande parte da sociedade que também temia os atos terroristas e a instalação do comunismo no país (basta observar a massiva participação da população na marcha). Recorrendo mais uma vez ao artigo de Steven Uhly, o autor nos lembra que “a resistência democrática brasileira era muito fraca. A sociedade brasileira não era acostumada com a democracia e sim com regimes autoritários, e via, por isso, na ditadura militar o menos pior. A resistência era facilmente rotulada e perseguida como terrorista, muitas vezes com a ajuda da população na descoberta e prisão de seus membros.” Basta, para isso, lembrar da existência do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) que contou com a participação de vários estudantes, policiais e intelectuais que apoiavam a ditadura militar. O apoio da Igreja ao golpe militar durou até o momento em que eles perceberam que haviam sido enganados pelo governo que estava estabelecendo uma ditadura e que essa ditadura tinha um forte caráter repressivo que chegou a atingir membros da própria igreja. Vide, por exemplo, o que aconteceu a Frei Tito, que foi preso e torturado, não se recuperando dos traumas e acabando por tirar a própria vida. Sua história foi contada no livro Batismo de sangue (1983), escrito por Frei Beto, que esteve com Frei Tito na guerrilha.

No verso “Comungo da ira fraterna”, temos um paradoxo: como fraterno e ira podem estar juntos? Quando buscamos a definição da palavra fraterno, que vem do latim fraternus e significa o que é relativo a irmãos, vemos que, no geral, a palavra carrega dentro de si a ideia de amor, o que definitivamente não é o caso aqui (a não ser que estivéssemos falando de irmãos como Caim e Abel). O torturador portanto, usando um termo estritamente católico, o comungar, nos diz, com ironia, que compartilha da ira do irmão, o torturado. É aquela velha história de que “quem bate, esquece”. Essa ideia de esquecimento nos vem à mente durante toda a leitura do poema.

No 2º verso, “molho o dedo na lágrima benta”, temos outra imagem da Igreja. Fica claro aqui que a crítica é à Igreja Católica, talvez por ser a religião oficial e mais forte no pais. Um hábito comum entre os católicos quando vão à Igreja é molhar o dedo na água benta e fazer o sinal da cruz como forma de proteção. Acontece que aqui temos a lágrima benta. É a lágrima do preso, do torturado, que o torturador usa em sua comunhão com o outro. A imagem do torturador é a do mais forte, que tem consciência da raiva e do sofrimento do torturado, o mais fraco, que está (ou esteve) à sua mercê e se utiliza disso por saber que o poder está com ele. Steven Uhly destaca em seu artigo que, “dentro da hierarquia militar que faz da tortura uma ferramenta, ela concede mais poder àquele que tortura que ao seu superior. Primeiro porque torturadores são efetivos, afinal de contas a tortura é efetiva. Segundo porque os torturadores são por um lado protegidos e premiados por seus superiores, que querem garantir sua lealdade e eficiência”. No poema de Leila Míccolis, a imagem do torturador na igreja seria uma tentativa de se redimir do que foi feito, dos crimes cometidos. Através de sua conversão, o algoz tenta conseguir o perdão e o esquecimento por parte do outro.

No 3º verso, temos a confirmação de que o torturador estava realmente na Igreja, como se o fato de ir até lá fosse apagar todo o mal cometido. Essa é uma ideia recorrente nos dias atuais, especialmente quando pesquisamos a população carcerária que se converteu em busca do perdão de seus crimes. Perdão, talvez. Esquecimento, não.

Depois de sua saída da igreja, o torturador, consciente de seus crimes, fala: “e minha culpa expiarei”. Seria seu lado humano falando mais alto? Ele estaria mostrando que tem noção dos crimes cometidos e que merece e vai pagar por eles? O contexto do poema, e a história em que ele se ampara, nos diz que não. Os movimentos e gestos do “torturador” parecem de fachada, artificiosos, retóricos, demagógicos. Parece se “disfarçar” com uma moral religiosa para ganhar a simpatia do outro que, não à toa, se encontra na posição de mendigo.

Nos últimos versos, “darei esmolas ao homem / que torturei”, a ironia está de volta. Para o torturador, dar esmolas é uma forma, senão a forma de expiar suas culpas. Fazendo nossa imaginação trabalhar um pouco, vamos pensar no lado do torturado. Qual destino sobrou para ele? Após sair da prisão, de ser anistiado (assim como o torturador), ele não consegue esquecer o que houve, não consegue seguir sua vida, nem se adequar à sociedade e muito menos fazer as pazes com as instituições (tanto que ele se posiciona do lado de fora da igreja). Edson Teles em seu artigo comenta o fato de que o Estado busca a anulação dos que são diferentes, dos que não têm representação e que ocorre “o desconhecimento (ou silenciamento) destes eventos por uma parcela considerável da população, que se limita a ignorar a questão, como algo pelo qual não são responsáveis e não lhes diz respeito” (p. 582). O que resta para o torturado, para a vítima dos excessos do próprio Estado, é virar um pedinte, ele não é mais nada, não tem representação nem função na sociedade. O pior de tudo ainda é ter que viver às custas daquele que foi responsável por todo o seu sofrimento. É interessante notar aqui que as rimas do poema (alternadas em expiarei / torturei e interna em darei) são os verbos que indicam justamente a relação entre a ação do torturador e o resultado dela nele mesmo. São verbos que vinculam o mal que foi feito e a culpa gerada por ele.

A autora, com sua costumeira ironia e acidez, critica a impunidade que permeia o período da ditadura militar, bem como questiona o lado daqueles que foram vítimas desse sistema. Os versos de Leila nos fazem pensar sobre essa impunidade e ao mesmo tempo se seria possível o esquecimento, ou, usando suas palavras, a anistia de todo o sofrimento causado. No final dessa leitura, várias perguntas vêm à mente: existe perdão para o torturador, simplesmente porque ele se arrependeu? O que restou para os torturados? Podemos esquecer?


REFERÊNCIAS TEXTUAIS


(¹) UHLY, Steven. Paulo César Fonteles de Lima – Poesia e ditadura. Literatura e autoritarismo – memórias da repressão. Nº 9. 2007. Disponível em: http://coralx.ufsm.br/grpesqla/revista/num09/art_01.php . Acesso em 11 out. 2013.

(²) SALGUEIRO, Wilberth. Militância e humor na “poesia de testemunho” de Leila Míccolis. Lira à brasileira: erótica, poética, política. Vitória: Edufes, 2007, p. 75-91.

(³) TELES, Edson. Políticas do silêncio e interditos da memória na transição do consenso. Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil . Vol. II. Organização: Cecília MacDowell Santos, Edson Teles, Janaína de Almeida Teles. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores, 2009, p. 578-591.

 

BIBLIOGRAFIA

BETTO, Frei. Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella . Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 1987.
FAUSTO, Boris. História do Brasil . São Paulo: EDUSP, 1995.
FRANCO, Renato. Literatura e catástrofe no Brasil nos anos 70. SELIGMANN- Silva, Márcio (org.) História memória literatura: o testemunho na era das catástrofes . São Paulo: Editora Unicamp, 2006, p. 351-369.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Verdade e memória do passado. Lembrar escrever esquecer . São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 39-47.
MÍCCOLIS, Leila. Desfamiliares: poesia completa de Leila Míccolis (1965-2012). São Paulo: Annablume, 2013.
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