BASTIDORES

Ele era um personagem muito mau-humorado. Demais. No começo, achei que era um rebelde sem causa, e fiz ver-lhe que este tipo de conduta já tinha passado de moda; mas, não adiantou nada. Depois, pensei que ele era doente, tinha lido numa revista sobre uma doença moderna chamada distimia, cujo maior sintoma era mau-humor crô-nico, mas logo descartei a possibilidade, porque soube que o mal era genético, e acabaria sobrando para mim, que lhe inseminara a vida.

Mudei então de estilo e de tática: procurei ser amiga, quis saber o que ele afinal queria do texto, ou de mim, mas, como sempre, respondeu-me com maus modos, e palavras impróprias para uma novela das seis da tarde, quando as donas-de-casa preparavam o jantar para a família, inocentes e anestesiadas. Reação previsível! Quando não soltava o verbo, ele se calava, obstinadamente, e paralisava o capítulo por horas, como se eu não tivesse mais nada a fazer, a não ser esperar que se dignasse a falar comigo.

Concluí então que não queria amigos. E me culpei: eu era a responsável por não ter conseguido encaixá-lo em nenhum grupo, coitado. Desenturmado, ele agora estava mais solto do que pluma ao vento. Até aquele instante, eu pouco sabia dele. Apenas, que era dado a cenas oníricas, flash-backs nostálgicos e, entre um comercial e outro, costumava sair de cena, sem voltar mais para o papel.

Quando o problema se agravou demais, eu, confesso, quis matá-lo, mas o outro co-autor me disse: — Resolve sozinha, o personagem é teu... Tramei ciladas, mas, se ele era um personagem ruim em vida, morto ia me atrapalhar ainda mais. Ate porque, eu precisava de um motivo para assumir sozinha esta medida drástica, e, sinceramente, culpada como ele me fazia sentir, eu não tinha nenhum. Como liqüidar com um personagem que parecia não existir? Maldita hora em que eu o concebi, pensei. Agora, porém, era tarde, Inês era morta, e esta sim, estava melhor do que nós, a salvo dos transtornos das oscilações do IBOPE.

Sem coragem de ir além, desisti de assassiná-lo e apelei para a psicanálise: qual a origem do problema? Lembrei-me de que ele tinha entrado apenas como uma participação especial, de poucos capítulos. Só que acabara ficando, porque, o ator que o encarnara, era filho da vizinha do tio do namorado do assistente de diretor da novela. Portanto, gente importante — mesmo mudo e com sua presença quase invisível, de tão diáfana.

Eu já tinha problemas demais. 1) Meu co-autor queria aparecer na imprensa mais do que eu; 2) a mocinha, de romance na vida real com o vilão da novela, e de mau com o marido, mocinho na trama, esfregava-se com seu inimigo pelos cantos escuros do estúdio e não queria os beijos do marido em cena... 3) 0 ator machão, não gostando de passar por impotente na história, me ameaçava ajuizar processo de difamação e calúnia, por denegrir a sua imagem publicamente... 4) O diretor, escritor frustrado, dando o seu "toque de gênio", mudava toda a intenção da cena. 5) A ilha de edição, montando seqüências inteiras erradas, criava flashs/-fowards à nossa revelia... E, como se não bastasse, ainda aquele personagem desajustado, atrapalhando até  minha vida pessoal, porque meu namorado, irritado com o tempo que eu passava com "o outro", me disse: ou ele ou eu. Pensei na multa contratual, e, pedi-lhe um tempo... só até o 217º capítulo, já que a novela fora esticada...

E como dois solitários é muito para uma narrativa só, resolvi enredar aquele infeliz desadaptado em uma história de amor tórrida. Pelo menos ELE seria feliz. Introduzi então Morgana, um doce de criatura: meiga, compreensiva, maravilhosa, e de uma paciência ilimitada. Nela, joguei todas as minhas esperanças de um final feliz para aquele caso, que já estava me deixando neurótica, obcecada, esquizofrênica, insana, insone. Nem ela, porém, agüentou a barra. Ao fim de um mês estava tão desgastada, que acabou morrendo de tuberculose, igual à Dama das Camélias... O público adorou a catarse, mas eu desabei: se nem aquela inocente mártir tinha endireitado aquele bruto, o que me restava fazer?

Cansada, irritada, joguei-lhe na cara:

—  Sabe qual é o problema? Você é um desalmado, sem coração.

Só então, pelo seu sorriso mórbido, compreendi tudo: ele, simplesmente, era um personagem fantasma, criado por um ghostwriter vingativo, para fazer com que eu pagasse todos os meus pecados, num resgate de carma coletivo...

É? Pois deixei-o vagando pela novela, à procura de outro autor, e troquei de núcleo.