TEXTOS SOBRE A EXPERIÊNCIA DO MESTRADO
Lucilene Machado

 

Crônica de uma aula anunciada

O copo branco, feito de um plástico reciclável, voou indolente, movido por um vento invisível. A intuição impeliu-me os dedos em direção ao pequeno objeto, não queria que os restos de batom champagne, fixo na borda, escancarasse o que já era público e notório: minha dependência do café. O odor esparramou-se pela sala e misturou-se a fragrâncias desencontradas de perfumes femininos, mas, aparentemente, ninguém prestou atenção. Todos os olhos continuavam fitos no professor que lia seu ensaio permeado de citações de Clarice Lispector. Frases sugestivas: "sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo palpável", ouço como se eu estivesse em outro tempo e em outro lugar. Ao final da leitura, um silêncio como aos que se sucedem a grandes apoteose. Um silêncio encorpado e imenso. Eu, como se tivesse acabado de o aplaudir de pé, sorrio, para que ele complacentemente não me faça nenhuma pergunta e tento entregar-me ao fio cortante de uma ponta de lápis que vai esquadrinhando textos alheios.

Soubesse ele da minha incapacidade em prender o pensamento nesse território teórico, jamais me teria como orientanda. Falta-me a metafísica, falta-me a dialética e, sobretudo, capacidade em encontrar a ponta da linha da idéia para desenrolar o pensamento. Convivo com esse nó no cérebro. Não sei nada sobre ciência e se um copo cai, impulsionado pelo vento, meu pensamento vai junto até galgar degraus de aviões para em paisagens azuis, descansar meu olhar.

Uma frase num cartaz verde, traz-me de volta à sala: "que o sol irradie seu coração antes de destruir", acompanha a sentença os desenhos de um sol e um coração. Que coisa mais petulante! Parece ter sido feito por uma criança que não sabe o que está a dizer. Desde o primeiro dia de aula, esse cartaz me tira a concentração. Quem foi que disse que o sol pode destruir corações? Só quem destrói corações é o homem, mas não quero isso martelando meu cérebro. Desvio o olhar para o outro lado, onde uma janela emoldura uma penca de mangas. A cada vez que olho, sinto que elas crescem. Pássaros, entre os quais araras coloridas, balançam em seus galhos. Tenho vontade de espantá-los para que não biquem as frutas, pois tenho a intenção de degustá-las... Não, degustar não é a palavra, tenho o mesmo desejo das crianças de olhos fundos, do vendedor ambulante de sorvete que tem a íris colorida de fome ou mesmo do pássaro asmático que canta para não morrer. Nunca ouvi pássaros tão roucos como em Três Lagoas. De repente, vêem para cá para morrer. Teoricamente, seria o lugar ideal para se morrer. Não deve ser bom para um pássaro morrer em lugar frio.

Mas que pensamento inútil. É preciso mais um café. Levante os ombros, Lucilene, é hora de você ler o seu texto. Arrumo os óculos e, com idéias de grandes pensadores vou montando fragmentos de um inventário que ainda não foi escrito. Um inventário que não sugere, teoriza. Descubro o que eu não queria saber. Vou inferindo na minha eternidade. "A eternidade de um homem é o não saber", e não me perguntem quem disse, eu não sei. Às vezes acho que fui eu que pensei, mas também não tenho certeza, embora esteja em conformidade com minha ideologia. Ou, melhor seria explicar, a minha ideologia é que é a da conformidade. Não dá para entender? Por exemplo, uma guerra acontece atrás das minhas costas, um submarino rói o alicerce da minha noite, um míssil cruza os horizontes do meu céu e eu durmo o sono dos inocentes sem a menor culpa. No momento só tenho uma culpa, a de escrever esta crônica inútil durante a aula de crítica biográfica...