OS SIM(bolo)S

Em criança, nunca fui muito boa nas brincadeiras do faz-de-conta. Achava um reino um tanto desconfortável, onde a realidade, em confronto com a imaginação, revelava-se frustrante e insuficiente. Era muito difícil para mim imaginar, nas panelinhas, comidinhas inexistentes, ou então monologar com bonecas mudas, que me olhavam aparvalhadas e silenciosas. Entendo, agora, que o faz-de-conta se assemelhava a certos jogos de sedução, em que o verniz do fingimento oculta, na prática, relações muito pouco sedutoras.

Sempre preferi o contato com os livros. Eles me mostravam, por exemplo, o habitat dos peixes, cheio de verdadeira magia. Como eu adorava o colorido mundo submarino com seus animais e sua flora exótica. Antes mesmo de saber ler, eu me deliciava com as ilustrações, imaginando histórias das profundezas abissais. Não era um mero faz-de-conta. O oceano existia, os peixes também, e eu, apenas, inventava aventuras. Os livros me revelavam o mundo, enquanto o faz-de-conta me mentia sobre ele. A ficção, portanto, era uma forma de eu própria transitar pelos universos e não de moldá-los egoisticamente à minha imagem e semelhança. Esta diferença de perspectiva fazia muita diferença. Sempre fez.

O nunca encenar “teatrinhos” na infância possivelmente marcou muito a minha postura diante da vida, fazendo-me, no cotidiano, distinguir fantasia da realidade, não para assumir uma atitude dicotômica, mas para aprender a trabalhar com os diversos ângulos de mim, consciente de ser múltipla e versátil. Lógico que nem sempre é fácil, na vida real, saber onde pára o “se” e onde começa o “agora”. Talvez porque a realidade, com suas diversas interpretações, pode não ser muito transparente; e a fantasia pode inundar-nos de vívidas surpresas. No entanto, registrando-se a simultaneidade dos nossos mundos paralelos, evitamos cair na armadilha de protagonizarmos papéis, nos tornando personagens de nós mesmos.

Afinal, meus caminhos desembocaram na literatura, fazendo dela minha predileta profissão. Ousei então abandonar a advocacia e encarar este projeto maravilhoso e torturante que é lidar com a imaginação o tempo inteiro, tendo de imaginar, também o tempo todo, como ganhar para comer e pagar contas. Um realismo fantástico, sem dúvida alguma... Neste “moto contínuo”, até hoje alegrias alternam-se com enormes dificuldades financeiras; e foi em uma dessas marés difíceis que um então amigo, na época, emprestou-me o SIM CITY, jogo que achei delicioso, por atuar, ao mesmo tempo, com setores administrativos de uma cidade: finanças, construção, planejamento de áreas urbanas, residenciais, comerciais, irrigação, construção de escolas, museus, compra de material antipoluente, etc. Eu me sentia a própria prefeita, construindo estradas, túneis, embelezando a cidade, fazendo-a desenvolver-se. Alguns meses depois, a mesma pessoa me trouxe uma cópia do THE SIMS, que são os moradores do Sim City, agrupados em bairros de dez residências. Aí sim, a paixão foi à primeira vista.

Ignoro quem nasceu primeiro: se as micronações virtuais ou o jogo do Will Wright; mas sei o dia exato em que entrou pela porta de minha casa a família  Lápida (Vladmir, Laura e Cassandra), do Lote nº 5: no aniversário do Urha, ano passado, ou seja: em 9 de junho de 2000. Quando as visitas se foram, instalei o joguinho e comecei a ter acesso à vida dos personagens, o que venho fazendo, sempre que posso, agendando-lhes as tarefas diárias e me divertindo muito com eles, que sempre conseguem uma maneira de me surpreender, tanto no primeiro jogo, quanto no “Gozando a vida” e no “Fazendo a festa” (os pacotes de expansão). Ou seja, de política, no Sim City, passei a secretária executiva, nos Sims. “Rebaixamento de cargo”? Nunca. Com eles eu exercito minha imaginação, sem perder a noção do cotidiano, feito de trabalho e de lazer... Só há um único problema, que considero sério: importo tantos móveis, objetos de decoração, aparelhos eletrodomésticos, portas, flores e animais para embelezar e dinamizar o jogo, que o espaço do meu HD já está se tornando pequeno. Ainda bem que não é um impasse insolúvel: entre resistir à tentação dos downloads e parar com eles, optarei por colocar mais gigas no meu Pentium, agradando, assim, a micros, míccolis e troianos.

Na Revista da Web, Dagomir Marquezi escreve “O Diário dos Sims”, coluna em que o cronista narra, através de capítulos, a vida de seus personagens. Transcrevo um trechinho do número de abril de 2001: “VIDA 2, DIA 58 – Conta corrente: $ 7274 – O carro da firma buzina. Finjo que não existe. O carro parte. Às 10h30 o telefone toca: estou demitido. Lembro da fórmula deixada pelo meu filho real”  — é esta analogia projetiva, presente o tempo todo, que me fascina. Há, porém, quem não goste justo deste referencial. No mesmo exemplar da revista, duas páginas à frente, na coluna “Zona.com”, Aran, em uma matéria intitulada: “Eta vida besta!  Qual é a graça de um jogo que simula o cotidiano das pessoas?”, assim referiu-se ao jogo: “Ah, dá um tempo! Se eu quiser ver a vida de gente comum, eu olho pela janela”. (...) “Um jogo que simula o tédio da existência humana é bastante significativo nesta era internética. Se a idéia de uma noite de prazer passou a ser um chat pornô no Uol, um game entediante sobre o cotidiano até que faz sentido”.

O cotidiano, a alguns entendia. A mim me encanta — seja na ficção (poesia ou prosa), no mundo real, virtual, ou nos jogos de simulação da vida. Como Marieta Severo, em uma entrevista na Conexão Internacional levada ao ar dia 30 de setembro deste ano (2001), sou das que se maravilham com o dia-a-dia, em todos os seus aspectos aparentemente pequenos e pouco importantes. A rotina diária não precisa ser maçante, só porque temos de, repetidamente, comer, tomar banho, estudar, trabalhar, dormir e ligar para os amigos. Torna-se enfadonha se encaramos estas ações como uma penosa obrigação, a que nos submetemos forçados, sem prazer. “Prefiro, de longe, o Age of Empires. Comandar os exércitos de Átila, o Huno contra os reinos da Europa é muito mais instigante, desafiador e divertido” — escreve Aran, que finaliza seu artigo citando John Lenon: “Vida é aquilo que acontece enquanto fazemos planos”. Ótimo... mas, que tipo de planos?...  No que me tange, não me satisfaço com espetaculares vitórias (nenhum jogo de guerra me diverte), ou sucesso a qualquer preço, para me sentir viva ou reconhecer a grandiosidade da existência — sinto-a exuberante principalmente em seus atos aparentemente pequenos e pouco importantes, ou melhor, pouco valorizados. Tendo trabalho na minha área, saúde e amor (incluo as amizades também aí), sinto-me feliz e realizada. E não acho que seja me contentar com pouco este aprendizado, tantas vezes emocionante, de querer expandir-me em paz, gozando a vida e fazendo festas...

Leila Míccolis