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Literatura e Jornalismo Ð Uma Opinião

Já li, mas não lembro onde, este jogo de palavras que, aparentemente, é apenas isto mesmo - um mero trocadilho. Porém se esmiuçado com profundidade contém, na pior das hipóteses, uma pista a ser seguida por quem se propõe a distinguir (ou não) jornalismo de literatura: "o jornalista escreve para viver; o literato vive para escrever".

 Obviamente, a questão não é assim tão simples. Quando o autor desta frase a elaborou, certamente estava se referindo à distância que de fato, parece existir, entre noticiar, comentar e reportar um fato, e criar um texto artístico. Nada mais falso do que esta dicotomia - pensa quem está a escrever isto.  É como se não houvesse nenhuma possibilidade de ambos - literatura e jornalismo - se integrarem e até, eventualmente, se fundirem. Trata-se, na verdade, de um velho maniqueísmo que sempre predominou, não apenas na literatura e nas artes, de um modo geral, mas também em quase todos os aspectos da nossa civilização ocidental.

Com efeito, estamos condicionados há muitos séculos a tomar partido.  A "torcer sempre por um único time"; a radicalizar; a ver todas as coisas e todas as pessoas como boas ou más, éticas ou amorais, imanentes ou transcendentes, religiosas ou profanas, direitas ou erradas (ou esquerdas), feias ou belas, psíquicas ou somáticas, espirituais ou materiais, contra ou a favor. Neste aspecto, o mundo oriental pareceria levar alguma vantagem sobre o ocidente, se com este comentário eu próprio não estivesse a criar mais dicotomias.

Se a palavra jornalismo for considerada no seu estrito sentido, isto é, "atividade profissional da área de Comunicação Social que visa à elaboração de notícias para publicação em jornal, revista, rádio, televisão, etc., acompanhadas ou não de comentários", não há como fugir àquele modelo citado no início do primeiro parágrafo. Certamente, não há como se falar em
literatura quando um repórter, um comentarista político ou outro profissional qualquer da área de comunicações, destituído de senso estético e de conhecimentos elementares do que seja o bem escrever - hábito que só se adquire através da leitura -, se senta a um computador e redige um texto dentro do prazo limite estipulado pelo editor. Por outro lado, quando o comunicador é dotado de sensibilidade artística, trata-se de um leitor de  obras clássicas, dispõe do tempo que lhe convier para terminar a sua matéria e, principalmente, é livre para dizer o que pensa, não há "joio a ser separado de trigo algum", ou seja, literatura e
jornalismo se confundem.

 A fim de embasar este raciocínio, nada melhor do que recorrer aos fatos. Como sempre, cada um deles supera, com larga vantagem, as palavras. Não se carece de ir longe para se concluir a favor das hipóteses acima aventadas. Evidentemente, este espaço seria insuficiente para entrar em detalhes. Todavia, se olharmos de relance para os grandes escritores da língua
portuguesa, uma parcela significativa deles foi (ou está) também representada por excelentes jornalistas.

 Mesmo consciente da omissão em que, inevitavelmente, incorrerei, sou obrigado a citar aqui alguns nomes. Joel Silveira, considerado por muitos como o único jornalista/escritor que escreveu a História ainda enquanto presente. Nelson Rodrigues, o maior dramaturgo deste país e que em suas próprias palavras foi "um menino que viu o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino.  E o buraco da  fechadura foi,  realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico." Otto Lara Rezende, para quem o escritor é alguém que clama no deserto, pois " o clube do poder tem as portas lacradas e calafetadas". Finalmente, para não me restringir a nomes que se destacaram apenas no século XX, não custa nada lembrar que também foram grandes jornalistas os escritores mais do que famosos: Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão e Fialho de Almeida, entre outros.

Raymundo Silveira (*)

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(*)  Médico, membro do Conselho Editorial da Revista FEMINA, órgão oficial da Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia