CINEMA BRASILEIROlogotipo


"PEDRO BLOCH ENTREVISTA HUMBERTO MAURO"
— Manchete de 25 de julho/64

1964: Gente Nova Fazendo Cinema Bom

    • O CÚMULO - "Em Cataguases, é considerado o cúmulo da falta de educação qualquer pessoa da cidade olhar para uma câmara na hora da filmagem" - começa Humberto Mauro, pioneiro do cinema brasileiro, que Sadoul coloca entre as cem figuras de maior importância no cinema mundial.
    "Hoje, quando O Pagador de Promessas já nos deu a Palma de Ouro, quando Vidas Secas já nos trouxe outros prêmios, quando Os Fuzis é galardoado e Deus e o Diabo na Terra do Sol surpreende críticos de todas as latitudes, fazer cinema, no Brasil, adquiriu uma nova dimensão. Já se vai distanciando o tempo em que som e imagem eram problema (hoje só faz som e imagem ruins quem quer); vai longe, também, o tempo em que uma fita começava com uma cena de boate (oh, as boates! Oh, as brigas!) em que cantavam Jararaca e Ratinho e, quando a filmagem ia continuar, apareciam Alvarenga e Ranchinho porque, àquela altura, a primeira dupla já tinha viajado".

    • A HISTÓRIA - Humberto Duarte Mauro nasceu em Volta Grande, Minas, a 30 de abril de 1897, filho de Caetano Mauro (um italiano que tinha vindo criança p'ro Brasil) e de Dona Teresa Duarte Mauro (sonhadora, culta, poliglota e mineira).
    "Eu apanhava muito porque era terrível. Desde pequenino montava em canoa e descia rio, trepava em telhado, tomava banho de açude. Terminado o ginásio fui fazer vestibular de Engenharia em Belo Horizonte, mas só cursei o primeiro ano, por ter perdido meu emprego de revisor da Imprensa Oficial. Voltei p'ra Cataguases, onde cursei a academia do quarto da sala".  Diante do meu espanto, Mauro explica:
    "Estudei eletricidade por correspondência. Recebia uns folhetos dos Estados Unidos e ia devorando aquilo tudo. Tive oficina, enrolei motor no Rio, pus instalação elétrica em dois vapores. Mas a minha cabeça estava toda voltada para a Dona Bêbe (Maria). Levamos namorando cinco anos. Casei com vinte e dois. Hoje, quarenta e quatro anos depois, continuamos os mesmos namorados de sempre, já com seis filhos e treze netos. Estou falando direito ou você quer eu eu fale enfeitado?"

    • O RETRATO - "Calcule que, um dia, me aparece, em minha terra, um sujeito que promete publicar uma foto minha e da estrela do filme, por quinhentos mil-réis, na revista do Ademar Gonzaga, que fazia cinema no Rio. O sujeito desapareceu e a foto nada de sair. Toquei p'ro Rio p'ra reclamar a publicação, dei de cara com o Gonzaga e nos fizemos amigos". ("Você pagar p'ra ver retrato seu publicado? Eu é que pago! - exclamou o Gonzaga. - Mentira! Nunca pagou!")

    • QUATRO DEDOS DE COXA - "Você veja como são as coisas. Em Ganga Bruta (1932), p'ra mostrar quatro dedos de coxa da artista, eu tive que fazer mesa-redonda. Hoje... é difícil encontrar uma artista que queira trabalhar vestida". (Me dá um cigarro aí!)

    • O ESTÚDIO - "Um de meus melhores estúdios é a cidade Volta Grande. Estou sonhando com projetos novos. Pensava ganhar dinheiro com O Canto da Saudade. Ganhei foi um Saci como melhor diretor de 1954 e o meu filho Zequinha tirou de melhor fotógrafo. Quando estive, agora, na casa de saúde, morre-não-morre (Mauro foi operado há pouco) passaram a fita. Os médicos não me deixam fumar, sabe?" ("Me dá escondido, aí, um cigarro, pelo amor de Deus!").

    • NEO-REALISMO ITALIANO E CINEMA NOVO - "Em 1938, fui a primeira pessoa a representar o Brasil num Festival Internacional (Veneza). Levei Vitória-Régia, O Céu do Brasil e Descobrimento do Brasil, com música de Villa-Lobos. Aproveitei e, na Cinecittà, fiz um curso de dublagem. Curso de brasileiro é olhar. Olhou, viu, fez. Nunca abri um livro de cinema, toda a eletricidade que sei aprendi por carta. Dei entrevista na Itália explicando que, enquanto nós fazíamos Favela dos Meus Amores, eles mostravam elefantes em Cipião, O Africano ou filmavam Os Últimos Dias de Pompéia. Nós queríamos conhecer a vida da Itália como ela é. Muito tempo depois é que veio o neo-realismo. Veja a rapaziada brasileira que está se revelando mais cedo que era de esperar: o Anselmo, o Glauber, o Roberto Farias, esse menino dos Fuzis (faço parte da comissão que escolhe os filmes no Itamarati). Não acredito em cinema novo. Acho que o que existe é gente nova fazendo cinema bom."

    • O ECLESIASTES - "Eu queria, sabe? era poder filmar o Eclesiastes. Tem uma riqueza de imagens maravilhosa: Todas as águas correm para o mar... Você já calculou o que se pode fazer em imagem com isso? O olho não se cansa de ver nem o ouvido de escutar... Já sentiu quanta coisa a câmara pode nos mostrar para justificar esta frase? E o vento? O vento vai para o Sul e faz o seu giro para o Norte. Continuamente vai girando... E o sol?... E nasce o sol e põe-se o sol e volta ao seu lugar donde nasceu. Eu queria fazer primeiro um documento do Eclesiastes e, depois, pegar um argumento rústico, primitivo. O Eclesiastes é a palavra de Deus ensinando a gente a viver. Você não deve procurar na vida mais doçura do que ela pode lhe dar. Sim, mas dentro do que ela pode dar, existem coisas formidáveis. Tudo tem sua hora e sua oportunidade e é muita aflição do homem. Andamos aflitos. Não sei que diabo de aflição é essa! Tudo tem o seu tempo determinado."

    • SEIS FILHOS - Humberto Mauro não vive aflito. Julga os seres e as coisas com aquela sabedoria quase caipira de quem se entende com Deus e a natureza. Mora na Senador Muniz Freire, no Rio. Sua pureza não se revoltou quando, na primeira exibição de Ganga Bruta, no Rio, teve que presenciar o fracasso total, indo chorar no camarim de Procópio, diante de Joraci Camargo, ali no velho teatro que existiu no Passeio Público. Ficava p'ra morrer quando pedia a um amigo p'ra ver fita sua e este saía da sala de espetáculos, ainda em meio da fita, para lhe atirar em rosto: Intragável! O próprio Pongetti chegou a chamá-lo de Freud de Cascadura porque ele declarara, no início da Ganga, que aquilo era "baseado nos estudos de Freud".
    "Deste olho esquerdo não enxergo quase nada e com o direito veja umas moscas. Um dia, faz muitos anos, eu estava com chumaço de algodão nos olhos (fazia curativo no oculista) e óculos pretos. Meu terno era desse azul que desbota. Tirei o chapéu p'ra enxugar a testa com um lenço e senti um peso. Era um transeunte que me tinha posto no chapéu uma esmola de quatrocentos réis. Guardo esse níquel até hoje. Passei o diabo aqui no Rio. Já morei com a família toda dormindo no chão, na rua da Liberdade. O padeiro me emprestou cinqüenta mil-réis para chamar a parteira p'ro nascimento de minha última filha. Mas, felizmente, tenho uma mulher de ouro. O Dr. Roquette-Pinto a batizou de Cunhã-Etê, que, em tupi, quer dizer mulher de verdade." ("Tenho um vocabulário tupi publicado.")

    • A CEGONHA - "Mas deixe contar a você, Pedro Bloch, que gosta de histórias de crianças, uma de meu filho e xará. Quando estava p'ra nascer uma de minhas crianças ele foi levado p'ra Minas com a seguinte explicação: Você precisar ficar lá porque a cegonha vai trazer um irmãozinho p'ra você. O menino olhou os adultos com uma cara muito séria e concluiu: Então são dois... porque a mamãe está grávida".

    • RADIOAMADOR - Distração de Humberto Mauro é conversar pelo rádio com o Brasil inteiro. Teve que fazer exame, é classe A e e´capaz de transmitir em Morse. ("Morse não tem muita graça. A gente leva um tempão p'ra contar uma anedota e o sujeito só ri uma hora depois.")
    "Sempre fui radioamador. Fui o primeiro a construir um rádio em minha terra. Lembro-me do dia em que propus fazer um para um fazendeiro, explicando-lhe que assim ele poderia ouvir as cotações do café no Rio. O homem andou espalhando pela cidade toda que eu tinha ficado doido. Também era considerado maluco por fazer cinema mas, hoje, nas retrospectivas, se verifica, curiosamente, que a gente em Cataguases fazia as mesmas coisas que a média dos outros países produzia. Agora estou trabalhando em A Velha a Fiar e na Teoria Geral da Fazenda Clássica."

    • A NOIVA DA CIDADE - "Tenho uma história na cabeça p'ra botar p'ra fora. É a de uma moça do interior que vem p'ra cidade grande. Volta desiludida mais tarde. Todos os homens do lugar se apaixonam por ela. É uma paixão coletiva. Mas aí surge um episódio real muito pitoresco. Calcule você que lá em Volta Grande tem uma cadeia que nunca prende ninguém. P'ra prenderem alguma coisa... o pessoal da cadeira caça passarinho. Pois ocorreu um fato curioso. Um dia prenderam um sujeito que tinha roubado uma ferradura ou coisa que o valha. A cidade inteira desandou a mandar coisas p'ro homem: comida, café, dinheiro, cigarro, o diabo. O meu primo, que era o delegado, resolveu deixar a porta da cadeira aberta p'ro homem fugir mas este protestou: "Não saio, não senhor. Estou esperando o café." Pois este episodio autêntico eu aproveito no filme."
    "A fita tem coisas curiosas como a daquela pessoa assobiando, às três da manhã, o vizinho ouve o assobio e faz coro e daí a pouco está a cidade inteira assobiando o mesmo motivo." ("Me dá um cigarro aí, escondido, pelo amor de Deus.")

    • COISAS - "O diretor de cinema que eu mais admirava era o King Vidor. Talvez porque ele tivesse tido uma vida parecida com a minha. Era do interior, gostava de fotografia, gostava dos temas de que eu gostava, também. Depois é que ele se separou de mim; deixou a Florence Vidor e eu continuei com a D. Bêbe."
    "Não. Não tenho escrito. Já fiz crítica de cinema, falando no radio. Parece que ninguém ouvia, porque as únicas cartas que eu respondia pelo microfone... eu mesmo mandava p'ra mim. Escrever em jornal, não. É muito complicado. Tem esse negócio de vírgula, não é?"
    "Não compreendo a aflição de tanta gente. Muitos querem rodar no espaço, como o Gagárin. Será que eles não percebem que eu já estou no espaço, girando em torno do Sol, há 67 anos? E aquela bobagem dele dizer que subiu no espaço e não viu Deus? Claro que não podia ver: não pegou altura que chegue."
    "Hoje o cinema tem recursos. Quando penso que na minha última fita eu perdi as eleições, depois de uma bela campanha p'ra economizar os foguetes da vitória!... Derrota, em cinema, sai mais barato."

    • A NATUREZA - "Quando vejo uma cachoeira, não vou de cara em cima dela. Escondo-me atrás de uma bananeira, esperando a hora certa. Há momentos na natureza que não se repetem nunca mais. Por isso é que, quando viajo, carrego sempre uma máquina comigo. De Congonhas p'ra frente, por exemplo, é uma coisa louca. E o vento é plástico. Bom p'ra não parecer fotografia. Natureza a gente não deve filmar quando a gente quer, mas na hora que a natureza escolhe."

    • AS PORTAS DA PERCEPÇÃO- "Você conhece este livro de Huxley? Dá um caminho mais novo ao cinema do que o mais novo cinema novo. O sujeito tomou mescalina e começou a ver coisas: formas, cores, texturas diferentes. Nós não estamos acostumados nem ao superclose-up (muitíssimo perto) nem ao superlong-shot (muitíssimo longe). Você já calculou se a gente pudesse dar mescalina a uma máquina de filmar?"

    • MÚSICA DE FILME - "Hoje aí estão compositores formidáveis para o cinema. É verdade que contei com o gênio Villa-Lobos. Mas, na maioria das vezes, comprava música a metro. Um dia quis colocar um trecho de O Guarani, numa fita, e fui procurar o representante da editora. Pediu quarenta contos. Eu exclamei: Mas espere aí! Não quero usar O Guarani todo! Só beliscar. Um pedaço daqui, outro dali. Resumindo: cantei os pedaços que queria e levei p'ra casa setecentos e cinqüenta mil-réis de Carlos Gomes e quinhentos e sessenta de O Orvalho Vem Caindo."

    • O DESCOBRIMENTO - "Pintor tem coisa formidável, em matéria de arrumação plástica. Aproveitei o famoso quadro do Pedro Américo, dispondo os personagens da primeira missa do mesmo jeito que ele. Só uma diferença: parece que Pedro Américo nunca leu a carta de Caminha. Lá diz, p'ra quem quiser ver, que uma só índia assistiu à cerimônia. Corrigi o quadro e filmei."

    • O HOMEM E A TERRA - Olho Humberto Mauro em sua grandeza simples e compreendo melhor do que nunca o que é um homem ser fiel a sim mesmo.
    "Tudo que é meu está lá na minha terra. Vou lá a cada dois ou três meses."
    Ali existe um salão de cinema com o seu nome, inaugurado por Roquette-Pinto. Ali está o Rancho Alegre, onde pousam sua alegria, suas medalhas, sua ternura. Ali estão o pequeno estúdio e o estúdio grande que é a cidade inteira que se orgulha de seu filho. Por conhecerem e respeitarem Humberto Mauro é que os habitantes de sua cidade nunca olham para a câmara quando ele está filmando. Um olhar estragaria a tomada. Minto. Uma vez um sujeito olhou. Quase foi linchado. À noitinha, apareceu com dois queijos e mil desculpas.
    Homem sem alardes, chegado aos ensinamentos do Eclesiastes, Humberto Mauro não se aflige, mineiro tranqüilo e realizado que é. Conhecendo-lhe o gabarito e o muito que lhe deve nossa tela é que a geração atual lhe ofereceu uma taça com a inscrição "Ao Mestre Humberto Mauro Oferece O Novo Cinema Brasileiro". Humberto deve sorrir com a palavra novo e de novo lhe vem o Eclesiastes aos lábios: "Nada de novo debaixo do sol." "Lança teu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o acharás." "Uma geração vai e outra geração vem, mas a terra para sempre permanece..."

    Olho Humberto Mauro. Está como que longe, olhando o fundo das coisas. Tem uma expressão tão bela e curiosa que ocorre que não é só a natureza que deve ser surpreendida, mas também a alma do homem. Mauro sonha o Eclesiastes, com o olhar mergulhado numa câmara cheia de mescalina que é a sua alma de puro e de criador. Analiso o mineiro que aprendeu tudo por correspondência e que nunca abriu um livro de cinema. E tenho vontade de me esconder detrás de uma bananeira para surpreender momentos assim. Na alma do homem também há momentos que não se repetem.

Do livro: "Humberto Mauro: Sua Vida / Sua Arte / Sua Trajetória no Cinema", Editora Artenova, 1978, RJ
Enviado por: Leninha