CARLOS FUENTES
ENTRE ANJOS E DEMÔNIOS

por Antonio Júnior
de Málaga (Espanha)

A 34ª Feira do Livro de Málaga, inaugurada oficialmente dia 28 de maio e que finaliza a 06 de junho, é uma das mais antigas de Espanha e está dedicada este ano a incentivar a leitura entre crianças. Para aproximar-se delas, a Universidade de Málaga editou uma seleção de textos de Miguel de Cervantes com o subtítulo de "Al Alcance de la Inteligencia de los Niños". No entanto, mais comentada é a presença do autor de "La Muerte de Artemio Cruz", Carlos Fuentes, entre muitos convidados.

Nascido no México em 1928, ele está lançando "Inquieta Compañia", da editorial Alfaguara. São seis contos sobre o divino e o humano, numa narrativa que tem como personagens anjos, demônios e vampiros. Elegante, aspecto jovial, o autor de "Aura" é conhecido não só pelo talento como também pelas palavras explosivas e sinceras.

AJ - Desde 1999, quando lançou "Los Años con Laura Díaz", já publicou mais duas novelas, um livro de ensaios e agora edita este de contos. É assombrosa a sua criação ininterrupta.

CF - Sou muito disciplinado. Em Londres, onde vivo, saio muito pouco e quase não tenho amigos, portanto escrevo muito. É uma cidade de clima ruim, gente fria e comida medíocre, portanto perfeita para escrever. É quando sou feliz, tanto que nem considero um trabalho e sim lazer. Estou em paz ao escrever. Quando estou viajando ou fazendo certas obrigações necessárias, fico insuportável, louco para voltar a escrever.

AJ - O seu livro anterior, "Viendo Visiones", é um ensaio artístico...

CF - Sim. Falo de pintores que admiro. Velàzquez, Antonio Saura, Botero e outros. São artistas que provam o valor da arte latino-americana.

AJ - A narrativa "Contra Bush" também foi muito falada, provocando adesões e discórdias.

CF - Desde que Bush anunciou a sua candidatura que fiquei preocupado. Não somente por ele, também pelo seu círculo, que representa o poder do petróleo. Bush é um perigo mundial que devemos combater. Ele é ignorante e medíocre e se movimenta exclusivamente para defender os interesses das empresas de petróleo.

AJ - Chegou a compará-lo a Hitler.

CF - A linha que separa o bem do mal é muito frágil. O ditador nazista acreditava que para o bem da Alemanha necessitava conquistar a Europa e exterminar os judeus. O mesmo acontece com Bush e sua obsessão sanguinária. Ele lançou o mundo numa aventura terrível e imprevisível. Felizmente existe a literatura que surge nesses momentos em que o bem e o mal se confundem.

AJ - O seu novo livro aborda o gênero fantástico. Por quê tal interesse?

CF - O fantástico é uma invenção divina. Deus criou anjos e demônios e ao expulsar a Luzbel deu-lhe uma opaco. Assim o mal é uma opção de nossa liberdade. O meu interesse em escrever este livro surgiu ao ler as crônicas dos primeiros exploradores do continente americano. Entre outras coisas, eles afirmaram ter visto baleias com dois seios e tubarões com membros viris. Cristóvão Colombo jurou que viu sereias no trajeto. O certo é que há vampiros e demônios por todas as partes.

AJ - Inclusive no México.

CF - Óbvio. Vivemos uma situação muito delicada. O governo, o Congresso e os partidos políticos estão em crise. Estamos numa campanha presidencial antecipada, fora de hora, e já deixamos de lado problemas fundamentais como saúde, educação e desenvolvimento. No México, as pessoas vivem com dois dólares ao dia e estão desesperadas, enato começam a acreditar que a ditadura é a solução. São os tentáculos do mal. É um momento perigoso que me preocupa muito. A maior parte da América Latina vive uma democracia insegura e sem desenvolvimento. É complicado porque gera um saudosismo autoritário. Por isso é preciso dar a democracia um desenvolvimento organizado desde os mais pobres. A pobreza é o maior fantasma da América Latina e resolver esta situação deve ser o problema prioritário dos nossos governantes.

AJ - Uma das suas maiores paixões é o cinema. Sabe-se que é cinéfilo e foi amigo de longas datas de Luis Buñuel. Por que nunca escreveu um roteiro para ele?

CF - Iniciamos um ou outro roteiro. Certa vez trabalhamos na adaptação de À Sombra do Vulcão, de Malcolm Lowry. Ele pensava em Peter O'Toole e Jeanne Moreau como protagonistas. Depois de algumas semanas, Buñuel me chamou e disse: "Carlos, não podemos continuar o trabalho porque é uma novela infilmável, tudo se passa na cabeça do personagem central e está cheia de referências literárias". Também escrevi alguns diálogos não creditados para "O Anjo Exterminador".

AJ - Como surgiu a amizade de vocês?

CF - Durante as filmagens de "Nazarín", no México. Ele gostava de beber e ficou admirado porque eu, embora jovem, bebia muito e sem dar vexame. Possivelmente foi a figura humana mais extraordinária que conheci. Ele era afetuoso, amigo, tinha uma memória fantástica e havia participado dos principais acontecimentos do século XX.

AJ - Ganhou o Príncipe de Astúrias de Letras, o Cervantes e até um prêmio da Academia Brasileira de Letras. Falta o Nobel?

CF - Não espero prêmios, apenas faço o que sinto que devo fazer, ou seja, escrever sinceramente.

AJ - Como escritor politizado, acredita que a literatura deve ter uma função social?

CF - Segundo Edgar Allan Poe, a função da literatura é mostrar o que está presente e não somos capazes de enxergar. Creio que a obrigação social de um escritor é com a imaginação e a linguagem. O escritor mais apolítico está cumprindo a sua função ao escrever bem. Além disso, podemos ter, como é o meu caso e de muitos outros, uma inclinação para a ação política. Mas isso é outra coisa. Gosto de estar perto da política cotidiana mundial. Creio que estamos numa época de transição, com interrogações preocupantes a respeito do futuro. Temos que pensar seriamente no que está acontecendo e no que pode acontecer.

AJ - O Brasil, como tantos países, vive permanentemente bombardeado pelo lixo cultural norte-americano, gerando uma certa alienação e colonização. Crê que a globalização devorará a identidade cultural?

CF - Não é um problema que me preocupa. Sempre houve uma cultura popular de origem estrangeira bombardeando distintas áreas do mundo: Roma, Constantinopla, Paris e Nova York. Não causa grandes danos porque somos capazes de assimilá-la e seguimos sendo os mesmos. Como mexicano, sei que a minha cultura é muito mais forte que a norte-americana e mesmo com a invasão cultural dos EUA, resistimos, e somos ainda mais fortes. A cultura vive de contágios e não de isolamento.

AJ - Já esteve lado a lado com muitos dos líderes mais poderosos do mundo. O que tirou de proveitoso?

CF - Aprendi que o poder e a cultura são coisas muito diferentes. É sempre interessante conhecer chefes de Estado inteligentes. O Fernando Henrique Cardoso foi um dos presidentes mais inteligentes que conheci. É um homem culto. Assim como François Mietterrand e Bill Clinton. O que não significa que estava de acordo com a política deles. Agora existem alguns líderes que prefiro nem falar.

AJ - Depois do "boom" literário que revelou nomes como Grcia Márquez e Ernesto Sábato, como vai a literatura latino-americana?

CF - Vai bem. Há uma grande diversificação de escrita, de preocupações temáticas e pessoais. Há uma extraordinária diversidade de pontos de vista. É um momento interessante, excitante e variado.

AJ - Lançado "Inquieta Compañia", o que vem por aí?

CF - No momento estou nas mãos dos meus editores. Faço divulgação, dou conferências, concedo entrevistas. Ainda estou pensando no que vou escrever. Tenho algumas novelas iniciadas, em estado de notas, de esboços. E francamente, estou no auge desse conflito existencial que começa no momento em que se termina um livro.

Enviado por Antonio Júnior, em 2/6/04