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Bate-papo com ALCIDES NOGUEIRA, autor das novelas O amor está no ar, Torre de Babel, A Força
de um Desejo, entre outras, teatrólogo, distinguido já com o Prêmio Molière, com a peça sobre Rimbau e Verlaine: Poesia e Pólvora.
Era uma noite qualquer: faculdade, editora, miado dos nossos gatos
e Raul incansável no cd. Sempre em fim de noite, quase começo
de outro dia, entro no chat. Depois de colibri, as salas têm
sido ponto de encontro de meus amigos virtuais. Naquele dia, não
tinha ninguém conhecido. Comecei, então, a papear
com duas ou três pessoas. Uma delas impressionou-se com minhas
metáforas e me perguntou o que eu fazia; disse que era escritor
e ele me respondeu que não tinha dúvida, pois logo
percebera pelo meu estilo de teclar; falou-me que também
era da classe. Vimos logo que tínhamos muita coisa em comum,
e, para maior surpresa ainda, que Leila conhecera, na infância,
através de correspondência, ele e sua irmã.
Neste dia, ganhei um amigo incrível e Leila reencontrou companheiros
queridos separados pelo tempo. E dizem que o micro é algo
frio... (UF)
Urha - Você começou sua carreira dramatúrgica
no teatro ou na TV? Fale deste início.
AN - Comecei a fazer teatro amador, ainda em Botucatu, interior
de São Paulo, onde nasci. Minha primeira peça profissional,
em São Paulo, aconteceu em 1977 — A FARSA DA NOIVA
BOMBARDEADA —; uma peca que lançou artistas como Miguel
Magno e Cida Moreyra, entre outros autores. Ficou apenas um mês
porque foi censurada pelo Armando Facão, ministro da justiça
da ditadura. Foi em 81 que consegui meu primeiro sucesso, LUA DE
CETIM, que me deu o meu primeiro Molière e outros prêmios.
Foi a partir daí que a televisão se interessou pelo
meu trabalhão e a Globo me convidou para escrever um especial
sobre o Chico Xavier, com direção do Vanucci. Depois
da explosão de FELIZ ANO VELHO (em 1983, quando ganhei meu
segundo Molière e todos os prêmios da temporada), aí
veio o convite para fazer novelas. E a primeira foi LIVRE PRA VOAR,
onde colaborei com Walther Negrão (1984). A partir disso,
teatro e tv seguiram em paralelo.
Leila - "Ventania", sua peça de
teatro atual esta em cartaz em SP depois delonga temporada no Rio.
Me parece que ela esta sendo mais polemica para os paulistas do
que para os cariocas, que amaram a peca. A que você atribui
esta reação?
AN - Foi o mesmo sucesso que pintou no Rio. Mas houve reações
mais fortes. Talvez São Paulo identifique mais proximamente
o conflito sexualidade - religiosidade de que trata a peca, e isso
dói mais na ferida do paulistano. Também porque foi
aqui que o Ze Vicente (de quem em termos a peca fala) morou a maior
parte do tempo e produziu muito de sua obra. O paulistano é
mais conservador que o carioca em muitos aspectos, embora a cidade
em si não. Os valores daqui são diferentes e a postura
do Rio em relação ao teatro é mais light (no
bom sentido).
Urha - Para você qual a diferença
fundamental entre escrever para o teatro? E para a TV?
AN - Acabamento. No teatro, você tem a possibilidade de ficar
muito mais tempo gerando o texto, dando a ele o acabamento necessário.
Na televisão, por forca da pressa, isso é impossível.
Você tem de parir um capitulo de novela por dia e tudo bem...
No teatro também existe uma integração muito
mais intensa entre autor, diretor e elenco. Na televisão,
isso acaba se diluindo. Mas eu gosto muito dos dois veículos
e sinto muito prazer escrevendo para mundos tao diferentes.
Urha - Além de escrever, o que você
gosta de fazer?
AN - Eu ouço muita música, leio muito, adoro artes
plásticas (vejo todas as expo que posso), vou ao cinema,
ao teatro, namoro, jogo cartas e bingo, viajo...
Leila - Você trabalha melhor "sob pressão"?
AN - Na televisão sim, mesmo porque é inevitável.
Mas, quando escrevo para o teatro, quero toda a paz do mundo. Nem
sempre isso é possível, mas quando consigo me isolar
do mundo para criar uma peça, é dos deuses.
Leila - E "inspiração"...
e' "dom divino"?...
AN - Não, não acredito nisso. Acho que todo autor
é antenado, tem insights, consegue visualizar muita coisa...
Mas inspiração é um conceito antigo... Também
não acho que seja aquela historia de transpiração...
Para mim, escrever é exercício sim, mas as vezes as
coisas brotam em borbotões, como se fosse uma escrita automática,
e você acaba nem mexendo muito no texto. Outras, você
escreve e reescreve mil vezes uma cena, para chegar naquilo que
está querendo dizer.
Leila - Qual a novela que lhe deu mais trabalho?
E a que lhe deu maior alegria?
AN - A novela que mais me deu trabalho foi SALVADOR DA PÁTRIA,
quando escrevi com o Lauro Cesar Muniz. Sofremos pressão
de todos os lados, o Lauro ficou doente e levei a novela sozinho
durante um bom tempo. Foi estressante, embora o resultado tenha
sido muito bom. É a novela com a segunda melhor audiência
da Globo (74%). As que me deram mais alegria foram PRÓXIMA
VÍTIMA, que transcorreu em vôo cruzeiro todo o tempo
e mobilizou todo o pais, graças a trama muito bem armada
do Silvio de Abreu e O AMOR ESTÁ NO AR, que, além
de ser a minha primeira novela solo, sinto uma harmonia muito grande
com direção, com os co-autores Bosco Brasil e Filipe
Miguez, e a repercussão que provoca, mesmo sendo uma novela
de seis horas, hoje um horário muito complicado.
Urha - Em literatura, quais os autores preferidos
em prosa e verso?
AN - Em teatro, Tchecov, Jorge Andrade, Nelson Rodrigues, Plínio
Marcos e Eugene O Neal. Em literatura, Proust, Balzac, Machado,
Eça de Queiroz, Flaubert, Genet, Updike, Fante, Gertrude
Stein e Joyce. Em poesia, Rimbaud, Sylvia Beach, João Cabral,
Mallarme, Baudelaire, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Kavafis.
Urha - Voltando ao teatro: quais são seus
novos projetos?
AN - Colocar em cena uma peca escrita em 89, minha única
inédita, PARIS - BELFORT, que e uma releitura muito pessoal
das Três Irmãs, de Tchecov; escrever a terceira parte
da minha trilogia sobre o discurso moderno, que começou com
a ÓPERA JOYCE, seguiu com O RETRATO DE GERTRUDE STEIN QUANDO
HOMEM e terminará com O BARCO BEBADO E SEU TIMONEIRO, sobre
a relação Rimbaud e Verlaine. Também quero
escrever o quarto ato da LUA DE CETIM, abarcando o período
Collor.
Leila - Como é o seu dia? Sobra tempo para
o lazer?
AN - Quando estou escrevendo novela, não. Nem para o lazer
sexual. Mas quando estou em férias da TV, procuro sair de São
Paulo, ir a Paris, ver muito teatro e cinema, ir a concertos, encontrar
amigos, jogar conversa fora etc...
Urha - E' possível fazer novos amigos, a
esta altura da fama?
AN - Sim. Você é um exemplo disso. É muito mais
difícil do que antigamente, pois o approach das pessoas é
meio esquisito. Sempre existe aquela historia de imaginar que ser
meu amigo poderá abrir portas. Besteira. A gente abre portas
pelos méritos próprios e não apropriados de
outras pessoas. Também é complicada a aproximação
afetiva, sentimental, sexual... Porque sempre fica a impressão
de que as pessoas estão transando com a imagem publica e
não com o Alcides de sempre... Mas tenho levado bem isso.
Eu procuro me resguardar, sem abrir mão da minha liberdade.
Até mesmo a liberdade de me dar mal em determinadas situações.
Urha - O que você gosta menos na vida?
AN - A falta de respeito. Isso inclui a falta de respeito aos direitos
humanos, a falta de respeito ao nosso quotidiano, a falta de respeito
que as vezes nos mesmos sentimos com relação a gente...
Não posso deixar de sofrer quando vejo a incompreensão
do governo com as crianças de rua, com os sem-terra, com
os doentes e idosos... Dói. Dói muito. A vida fica
feia e suja se compactuamos com isso.
Leila - O que você preza mais nas pessoas?
E nos seus personagens?
AN - A integridade. Tanto nas pessoas como em personagens. Porque,
para mim, integridade não é sinônimo de maniqueísmo.
A gente pode errar sim, mas tem de ter a humildade e a nobreza em
enxergar isso... Claro que, quando falo de pessoas, isso é
fundamental, pois inclui caráter (não suporto pessoas
de má índole)... Nas personagens, muitas vezes, carrego
nas tintas, para que os signos de vilania sejam decodificáveis
de forma mais simples e ampla, principalmente na televisão.
Leila - O teu teatro sempre foi assim cortante
como "Ventania"? Por quê a mudança, e quando ocorreu?
AN - Meu teatro era mais condescendente. Talvez eu tivesse medo
de colocar no palco meus fantasmas, sem nenhum tipo de tapadeira.
Por mais chocantes e duros que fossem. Quando comecei a ver que
minha geração - muitos amigos, quase todos - tinham
morrido, ou na época da repressão, ou depois, com
a aids (outra forma de repressão), eu percebi que tinha de
colocar em cena todas as minhas coisas - doessem ou não em
mim ou no espectador. Acho que esse dilaceramento sempre houve.
Estava oculto ou preservado em algum ponto, muitas vezes recoberto
pela poética da minha palavra (que não abandonei nem
pretendo, pois gosto), mas agora é tudo ou nada. Não
tenho o que perder. Não vou deixar passar a vida sem que
as pessoas saibam que o Alcides Nogueira pensa desse jeito. É
a minha forma de estar inteiramente no mundo, embora o Abujamra
me chame de o guerrilheiro do nada (risos). O que me deixa muito
feliz!
Urha - Como se dá o seu processo de criação?
AN - Basicamente pela maturação. Isso, tanto no teatro
quanto na tv. Pinta algo em minha cabeça. Isso vai adquirindo
contornos, delineamentos. Vou deixando, deixando... Um dia, sinto
a necessidade e a urgência de colocar isso no papel. Aí
a coisa se torna quase física. Entra a fase do exercício
(se for teatro). Escrevo, escrevo, para ver o que é melhor...
Como disse antes, muitas vezes a coisa vem com tudo. ÓPERA JOYCE,
que considero um dos meus melhores trabalhos, nasceu em um dia.
Foi como se estivesse tomado pela energia da escrita. PARIS-BELFORT
me consumiu seis meses de escrita exaustiva.
Urha - Como e' estar no primeiro time da Globo?
AN - Por um lado, extremamente gratificante. Muita gente quer isso
e não consegue. E eu não consegui de graça,
mas por conta de muito trabalho. Foram nove novelas como colaborador
e depois como co-autor. Vem aquela sensação de conquista,
de reconhecimento. Por outro lado, as dificuldades que citei de
aproximação com as pessoas, de viver mais calmamente
a vida, isso tudo fica mais difícil... O importante para
mim não é estar no primeiro time da Globo, mas ter
a possibilidade de mostrar meu trabalho e ver que a mídia
reconhece, muito mais pessoas são atingidas por ele, as portas
para o teatro se abrem mais facilmente pois se trata daquele autor
da novela x...
Leila - "O amor está no ar" é a primeira
novela que você assina sozinho. E' uma novela romântica?
Você acha que só o teatro pode veicular obras fortes,
que tratem de tabus e preconceitos?
AN - O AMOR ESTÁ NO AR tem sua dose de romantismo sim. Eu
fui buscar em Jane Austen, na sabedoria dela, muita coisa que está
na minha historia. No horário das seis é muito mais
difícil colocar temas mais polêmicos. Mesmo assim,
estou tratando do judaísmo. É a primeira vez que se
vê isso na tv brasileira. E é incrível, pois
temos no pais a terceira maior colônia judaica do mundo. Também
falo de ódio, de poder, da troca de dinheiro... Em a PRÓXIMA
VÍTIMA, mesmo com muitas limitações, foi possível
tratar da homossexualidade e do racismo de forma muito clara e digna.
Obviamente no teatro tudo isso é mais fácil. Mas atinge
menos. Um capitulo de novela da Globo é visto por milhões
de pessoas. Uma obra teatral, pois mais sucesso que faca, não
leva mais que milhares de pessoas, durante toda a temporada.
Leila - E tem OVNI na novela, não é?
Você acredita em UFOS?
AN - Acredito sim. Acho muita impertinência e presunção
do terráqueo achar que está sozinho nesse universo
todo. Mas na novela o assunto entra de forma diferente que no ARQUIVO
X ou na JORNADA NAS ESTRELAS, por exemplo. A questão da ufologia,
na minha novela, está diretamente ligada aos conflitos interiores
vividos pela personagem da Natalia Lage, a Luiza. Fica sempre a
duvida se ela realmente está mantendo contatos ou tudo aquilo
não é a forma que ela encontrou para falar dos seus
problemas, para exteriorizar suas dificuldades com o mundo, com
as pessoas...
Urha - Fale da sua experiência com os outros
autores com os quais trabalhou.
AN - Eu adorei trabalhar com alguns deles.
Sou extremamente grato ao Walther Negrão, que me ensinou
o beabá da novela, com toda a sua generosidade. Abriu seu
baú de experiência e disse: pega, Alcides, e se vira...
Foi maravilhoso. O Silvio de Abreu continua sendo, alem de um autor
a quem sempre recorro para me dar dicas, para fazer uma boa analise
do que estou fazendo, um amigo de todas as horas; adorei trabalhar
com o Gilberto Braga, que tem uma sensibilidade fantástica...
Com outros, a coisa foi mais difícil. Uma co-autoria sempre
esbarra na questão do ego, da criatividade que se choca...
em muita coisa, com as quais precisamos lidar com luva de pelica.
E nem sempre isso acontece. Aí, surgem situações
de choque, magoas etc...
Leila - Você sente influencia de algum autor
em particular em suas obras?
AN - No teatro, sinto muito a influencia de Tchecov e Jorge Andrade.
E de todos os poetas que amo. Porque meu teatro chega a ser quase
um poema dramático, tal a força com que a poesia me
domina.
Leila - Muitos intelectuais discordam de que novela
de TV seja literatura. E para você? Por que?
AN - É literatura sim. Talvez sem o acabamento desejado.
Se pudéssemos escrever um capitulo por semana, com certeza
teríamos sempre belas cenas, pungentes, dolorosas, alegres,
doidas, criticas etc... Mas a pressa prejudica isso. No entanto,
a televisão, no Brasil, acabou suprindo a leitura. Infelizmente,
claro. Mas melhor ver um bom especial ou uma novela bem escrita
(e há muitas), do que continuar absolutamente fora do jogo
das idéias.
Urha - E como tem sido sua vivência/experiência
com os vários diretores de teatro com os quais você
tem trabalhado?
AN - Eu me dei muito bem com quase todos. Sempre houve troca, respeito,
entendimento. Claro que o filtro do diretor nem sempre é
o mesmo do autor. Nem a óptica. Mas a somatória desses
filtros, juntando-se a maneira como o autor veste a personagem,
provoca uma obra maior do que aquela que está no papel. Particularmente,
alguns diretores conseguiram a tradução do meu universo
de maneira muito bonita. O Marcio Aurelio, o Abujamra, o Paulo Betti,
o Gabriel Vilella, o Francisco Medeiros, foram diretores que souberam
exatamente o que eu estava querendo dizer e, não abandonando
em momento algum o conceito estético deles, conseguiram um
casamento maravilhoso entre texto e encenação.
Leila - Você sempre quis ser escritor? Sempre
acreditou que ia dar certo?
AN - Sempre quis ser escritor. Quanto ao dar certo, nunca me preocupei
com isso. As coisas foram acontecendo de forma natural, como um
rio que corre pela aldeia... Deram certo, ainda bem. Se não
tivesse sido assim, eu continuaria escrevendo. Talvez tivesse de
achar outra forma de sobrevivência e seria infeliz. Mas eu
não abriria mão nunca da minha escrita. É o
meu canal com o mundo. Não há como viver sem ele.
Urha - Quem mais o incentivou na sua carreira?
AN - Minha família sempre foi muito ligada as artes. E alguns
professores. Tive a sorte de pertencer a uma geração
onde a manifestação artística era uma forma
de posicionamento como cidadão, e isso me deixou muito mais
a vontade para ir em frente. Não sei como hoje as coisas
acontecem para quem começa uma carreira de escritor, ou de
pintor, ou de musico. Houve muitas vezes em que as coisas pareciam
estar minguando, principalmente durante a ditadura. Mas acho que,
como bom escorpiniano, consigo sobreviver e renascer.
Urha - E a Internet, entrou pela sua vida? Como?
AN - Como uma teia mesmo. Que foi me envolvendo. Comecei como curioso.
Sou muito curioso com todo tipo de comunicação, e
todo tipo de modernidade. Hoje não uso tanto a net como fazia
no inicio. Cheguei a ficar dias e dias conectado, principalmente
em chats e visitando sites americanos... Agora estou mais controlado,
mesmo porque não tenho muito tempo. Mas a net me ajudou a
conhecer pessoas incríveis e a reencontrar outras. Você,
Urha, conheci por meio da net, e a Leila eu reencontrei. O seu livro,
Urhacy, sobre os chats, é lindo e desvenda de maneira brilhante
esse mundo virtual. As pessoas devem le-lo, para entenderem porque
a net hoje é realmente um grande canal, que mitiga um pouco
a solidão do final de milênio.
Leila - Que dica você daria para os autores
que estão começando?
AN - Ler, ler muito. Principalmente poesia, que é a síntese
de toda a palavra e de toda a emoção. E tentar todos
os canais, não importa quais sejam. Teatro, literatura, televisão...
E sem preconceito. Há espaço para todo mundo...
Urha - E as suas poesias, saem da gaveta?...
AN - Por enquanto não. Ainda não me sinto um bom poeta.
A poesia é a mais difícil tradução das
emoções, porque é contida e espraiada ao mesmo
tempo. Cálida e cortante. Verborrágica e econômica.
Não, ainda não estão maduras. Um dia sairão.
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