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Não há retratos do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes (1746-1792), feitos por alguém que o tenha visto pessoalmente. Nem testemunhos oculares sobre sua aparência, com a insuficiente exceção do também inconfidente Alvarenga Peixoto, que se referiu a ele como "feio e espantado". Assim, todas as imagens conhecidas do herói são fruto exclusivo da criatividade dos artistas. Cada um o interpretou a seu modo, segundo inclinações pessoais, influenciadas por aspectos políticos das diferentes épocas em que produziram.
Em "Tiradentes - O corpo do herói", a historiadora de arte Maria Alice Milliet estuda, através de pinturas e esculturas de Tiradentes, a transformação do alferes em herói, partindo do princípio de que o mito se constrói em paralelo à construção simbólica de sua imagem.
Castro Alves foi o primeiro a associar Tiradentes a Jesus
Como a Inconfidência Mineira de 1789 pretendia não só libertar o Brasil de Portugal, mas também abolir a escravidão e implantar a República, é natural que Tiradentes só tenha sido valorizado a partir da queda do Império, exatos cem anos mais tarde. Principalmente porque, com a Independência, a família Bragança continuou no poder - os dois imperadores brasileiros eram neto e bisneto da rainha Maria I, que condenou o alferes à morte na forca.
Embora não pretendendo escrever um livro de História, a autora começa narrando a evolução da historiografia do movimento inconfidente. Fica claro que a reabilitação do herói contra as tentativas de minimizá-lo, feitas por historiadores da Monarquia, só viria com o livro de Lúcio José dos Santos ("A Inconfidência Mineira"), publicado em 1927.
Nesse ponto, a autora diz que Santos considerava Tiradentes o chefe do movimento, sem contestar o historiador. A liderança, no entanto, cabia a Tomás Antônio Gonzaga, que governaria nos primeiros três anos e era o responsável pela elaboração das leis, junto a Cláudio Manuel da Costa. Quanto a Tiradentes, seu real papel era o do mais entusiasmado propagandista dos ideais de liberdade. O destemor com que os pregava o levou a assumir sozinho a culpa para livrar os companheiros da pena de morte, o que não é destacado por Maria Alice Milliet.
O capítulo sobre a presença de Tiradentes na literatura focaliza a peça "Gonzaga" (1867), de Castro Alves, e o livro de poemas "Romanceiro da Inconfidência" (1953), de Cecília Meireles. No drama, Castro Alves teria sido o primeiro a associar Tiradentes a Jesus, chamando-o de "o Cristo da multidão".
Essa identificação ganharia força com a República, que encontrou em Tiradentes o símbolo de que necessitava para firmar-se no imaginário popular, processo já descrito por José Murilo de Carvalho em "A formação das almas", de 1990. Convergências como a traição sofrida, o fervor pela causa, a coragem e resignação diante da sentença, e finalmente, o martírio, aproximaram o alferes de Cristo, que passou a ser o modelo das representações do herói da Inconfidência. Os primeiros retratos de Tiradentes de que se tem notícia são da década de 1880, difundidos pelos clubes republicanos, bastante atuantes na propaganda do regime que viria a substituir a Monarquia.
Coube à República institucionalizar o mártir
Após a proclamação feita por Deodoro da Fonseca, Tiradentes começou a ser progressivamente institucionalizado. Um dos primeiros atos do governo republicano em Minas Gerais foi a mudança do nome de São João del Rei para Tiradentes. A medida, não mencionada pela autora, ocorreu em 6 de dezembro de 1889, anterior à decretação do 21 de abril como feriado nacional, em 1890, esta citada.
Das representações mais famosas do herói, destacam-se o "Tiradentes esquartejado" (1893), de Pedro Américo, e o painel "Tiradentes", (1949) de Portinari: a análise dos dois trabalhos ocupa mais de 50 páginas do volume.
O livro tem ainda pequenas falhas, como: a referência a Porto Seguro, quando fala de Varnhagen na página 35, sendo que somente na página 37 informa-se que esse historiador recebeu em 1873 o título de barão de Porto Seguro; chama o "Romanceiro da Inconfidência" de "Cancioneiro" na página 68, equívoco repetido mais três vezes; a confusão de datas quando diz que Renina Katz, tendo feito seus desenhos para o "Romanceiro" em 1956, não conseguiu consentimento dos "herdeiros" de Cecília Meireles para publicá-los. Cecília, porém, só faleceria em 1964.
Apesar disso, trata-se de um trabalho competente em seu objetivo central: fazer um levantamento iconográfico de Tiradentes, situando-o no contexto da formação de sua imagem de patrono da Nação. Esta, muito além do reconhecimento formal das leis e homenagens oficiais, está profundamente arraigada no sentimento do povo brasileiro, que vê nele um exemplo imortal de amor e coragem.
SERGIO AMARAL SILVA
(1) Tiradentes - O corpo do herói , de Maria Alice Milliet. Editora Martins Fontes
Fonte: O Globo On Line, sábado, 2 de fevereiro
de 2002
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