A AVÓ DA COZINHA
Minhas mais remotas lembranças me levam a ela: minha avó da cozinha. Eu tinha duas avós: a da sala e a da cozinha. A da cozinha era mãe da avó da sala, um dia isso me foi explicado. Não entendia a razão dos limites impostos a ela. Seu espaço se restringia a cozinha, ficando o resto da casa para a família imensa.A avó da sala era bonita, falante e autoritária. A da cozinha, pequena, franzina e com uma energia surpreendente. Era a primeira a levantar e a última a se deitar. Cuidava de tudo, pois tarefa especial para ela era manter os onze netos bem acarinhados em matéria de comidas e cuidados pessoais.

Ela conseguiu ser uma figura ímpar. Frágil fisicamente, tinha uma força interior incomparável. Diria que nada a ofendia, nem a humilhava. Exemplo igual só mesmo em algumas passagens evangélicas.

Ela colocava o porco entre as pernas e fazia o "sacrifício" entre os gritos de pavor da garotada. Parecia um filme de terror. No fim, diante do prato feito e gostoso todos esqueciam a cena feia e os gritos do porco misturado aos nossos.

Ela me enchia de alegria quando ralava côco, pois sabia que dalí sairia coisa boa. Era lindo o côco ralado caindo no panelão. Pareciam lascas de neve. E eu ria, quando nos raros momentos de "relax" ela sentava no quintal com o seu cachimbo .Eu perguntava o que de bom tinha naquilo, cheiro ruim de matar! Mas era tão pouco o que ela necessitava em termos de distração. Um cachimbo e nada mais.

Vivia para distribuir amor, carinho e dedicação. Ainda era "rezadeira". Vinha gente lá das lonjuras para ela rezar com galho de arruda. Faziam até fila!

Essa noite sonhei com ela. Estava na sala, entre nós e usava aquele vestidinho estampado miúdo. Só não era de chita. Dentro do sonho eu o transformei em crepe.

Ela estava limpinha, cheirosa e feliz.

Eu me aproximei dela levando uma bandeja com um copo de laranjada e biscoitos amanteigados. Ela sorriu e disse:

— Obrigada, Deda (uma mistura de Ynêyda (eu) e Yêda, uma jovem neta prematuramente levada para outras dimensões que de alguma forma eu perpetuava através do Deda).

Saudade dela! o tempo não anda dentro da nossa memória.

Belvedere

« Voltar