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UM BURACO SEM FIM
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Primaverei pela primeira vez numa véspera da estação
das flores, num 22 de setembro, nem sei que ano. Foi um dia. Não...
não é nascimento, que sou de outubro do dia 5. É primaverar.
Mais que isso. Desabrochar, brotar, germinar, aparecer, sangrar.Sair da
meninice e ser mulher. Não é mais que nascer? É sim.
É nascer duas vezes, pois aí se atina para vida e se começa
a notar que o coração bate por um bom motivo. Quase sempre,
nessa época, o coração bate por um par de calças
bem marcadas com volume e fogosidade. Ferida a gente ainda não tem,
só as dos joelhos manchados de mercúrio cromo por algum tombo
de bicicleta ou as do canto do dedo, da unha roída. Mas as cascas
dessas feridas começam a cair justo nesse momento. Só muito
depois é que a gente vai dar conta de que essas feridas eram melhores.
Mas... isso é só muito depois. Caem e nascem outras mais
dolorosas, demoradas na cicatrização. Feridas que partem
pra cima da gente como uma pedrada, sem a menor comiseração.
Rápido começo de vida. Chegam os tropeços, os enganos.
Chegam as mentiras, as fantasias e os desejos. Ah... chegam os desejos
de botar o dedo na panela quente. Queimar, arder, queimar, não importa.
O sentir é mais que toda a primavera junta. É toda estação
florida. Cores, perfumes, calor e alguma chuva. A pele muda. Os pés
só querem dançar e o corpo balança de um jeito assanhado,
moleque, faceiro. Quem está de fora adivinha a intenção
e a cara nem fica vermelha. A cara ainda acredita na vida e nunca olha
pra baixo. Tempo bom! Ai, que saudade dói! O pensamento só
se ocupava disso. Só isso. Primaverar em paz. Pensei que fosse durar
pra sempre. Pensei que a velocidade fosse coisa da modernidade. No fundo
a gente pensa tudo errado de tudo. E tudo é um buraco sem fim. Nem
sei se ainda existe primavera. Existe?
Cláudia Villela de Andrade
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