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Jane Welsh tinha um enorme talento literário como se pode comprovar com a leitura de suas cartas mas nunca saiu da sombra de seu famoso marido Thomas Carlyle.

Outra Jane: Jane Austen, um “autor anônimo” em sua época, era elogiada por nada menos que Sir Walter Scott que qualificava a este “autor desconhecido” como “um profeta iluminado do realismo moderno”. Jane nunca pôde ver em vida seu nome na capa dos livros que escrevia. Também Mary Ann Evans assinava com um nome masculino. George Eliot.

Muitas outras foram “outros”. Assim como as irmãs Brontë, Charlotte e Anne, utilizaram pseudônimos masculinos tentando escapar das “limitaçoes femininas” que padeciam como autoras, Mary Shelley soube superar essas limitações justamente escrevendo histórias fantásticas e de terror. Dr. Frankenstein criou o monstrengo que acabou célebre tomando seu nome. Tudo leva a crer que a história humana é plenamente protagonizada pelo gênero masculino, ainda que a observação atenta e crítica dessa mesma história nos mostra o papel mais que determinante das figuras do sexo oposto, nem tão frágil como supõe o tópico, mas sempre forçosamente à sombra, ou paralela à ela, relembrando-nos que desde a sombra também se pode visualizar o sol, ainda que seja mais doloroso e difícil.

Já no final do século xvi Michel de Montaigne era um mito e sabemos que seu editor, Langelier, foi quem publicou o celebérrimo “Ensaios”. O que nem todos sabemos é que a edição foi preparada pela cuidadosa e interessantíssima Marie de Gournay. O que também se poderia dizer de Sylvia Beach que publicou heroicamente “Ulisses”, o livro mais famoso de James Joyce, quando todo o mundo temia publicá-lo; e que com sua pequena livraria, Shakespeare&Co., fincada na rua Odéon na Paris do início do século xx, atraía para sua órbita um fabuloso número de escritores e outros artistas extraordinariamente significativos para a história da literatura mundial.

E por falar em história, poucas são tão críveis como a de Julia Margaret Cameron, uma simples esposa de um funcionário britânico que aos 48 anos depois de receber uma câmera fotográfica de presente (acaso para não aborrecer-se de sua vida
doméstica? Vida doméstica ou domesticada?) realizou retratos impresionantes de seus hóspedes famosos - tais como Darwin ou o já anteriormente citado Carlyle - e simplesmente inovou a arte da fotografia “amateur” com suas fotos “desenfocadas” ao estilo dos pintores pré-rafaelistas tornando-se uma figura incontestável na lista dos melhores e mais audazes fotógrafos da história.

Todos conhecemos e admiramos a Monet mas não nos preguntamos o que seria dele sem a “inspiração” da sua “Mulher do Vestido Verde” Camille Doucieux; assim como da ajuda sobrenatural de sua segunda esposa Alice Hoschedé. Fazia parte
do mesmo grupo de impressionistas a grande Mary Cassat, mas poucos lembram dela e quase nem se estuda sua vasta obra
nas escolas de belas artes; também nunca vi em nenhum consultório médico ou dentário uma reprodução de um quadro seu.

Citando assim nem zero vírgula algo por cento dos nomes e das histórias que mereceriam ser citados, percebemos que um
dia ao ano é pouco ou quase nada para promover a reflexão sobre o papel e a situação da mulher no mundo. Há legítimos
esforços para a prolongação desta data – 8 de março, além de histórico, um número bastante sugestivo - para pelo menos
seis dias mais e, dessa maneira, se podería celebrar sem resumos uma Semana Internacional da Mulher. Algo que me parece
urgente.

Particularmente, sou mais um dos sobrinhos que admiram profundamente Eva. Não por acaso, sobre ela recaiu toda a culpa
e o peso de haver danado o futuro da humanidade; depois da cobra, talvez o grande delinquente seja ela; simplesmente Eva.

Era inevitable não pensar nisso mais uma vez, pelo menos uma vez ao ano, um ano mais pelo menos. Não tanto pelo tempo
perdido, porque desde que nascemos é somente isso o que sabemos com perfeição fazer com ele. Perdê-lo. E para o quase
sempre. Mas porque ambos, homens e mulheres, sabemos que temos tanto para escutar e falar — nessa ordem, recprocamente — que acabamos mudos ou começamos gritando. É o prodigio da natureza sanguínea, o sentimento quente dos melhores mamíferos e acho que já era hora de sintonizar, arquear as asas na mesma direção: independente da direção dos ventos e da velocidade do vôo, nosso “norte” nunca foi tão cercano como agora.

Sempre as admirei por suas qualidades sensíveis e quando ainda era bem jovem isso era uma forma de um garoto reconhecer-se e distinguir-se, identificar-se de maneira “asexuada” com os matizes da sensibilidade proprias daquele gênero humano. Aprendi com elas. Vi que tanto faz no mundo ter ovários ou testículos. Era uma luta de eus, de moldes e modelos e de instinto. Como não sangrava todo mês não poderia ter aquele sentido de sensibilidade para com a vida. Me enganava e queria ser aquele homem coberto de pelos, bruto ou grego, não importando a prepoderância de um Mr.Hyde opulento. O sucesso, a sabedoria, o reconhecimento, meu meio, viria com a superioridade natural, com o grau de força que eu imprimisse no mundo. E era essa a atitude que o mundo esperava que eu tomasse. Um mundo masculino, maiúsculo, onde predominam as quantidades, a potência, a racionalidade com o absolutamente supremos. ( Nós, da grande massa, tomamos Darwin ao pé da letra sem duvidar um dedo de que poderia haver se equivocado em algo ou pelo menos que era um princípio, não o “problema” da questão resolvido com êxito. Palabra essa, êxito, um tanto masculinizada). Afinal, são sempre homens ditando as regras do jogo. Sempre homens jogando. Homens que assistem o jogo. Mudam as regras. Os homens vencem. São os filhinhos superprotegidos e adorados. Os amantes expertos. Os avôs bondosos e os velhinhos cativantes. O amigo simpático e (porque não?) os bons sobrinhos?

Sería puro sexismo se não fosse o fato de que algumas mulheres masculinizaram suas atitudes e – ao final, ainda que saudavelmente – gritaram por igualdade nos tempos aqueles. Hoje, muitas delas percebem a equivocação... e agora adquirem a perturbadora visão da busca igualitaria como mera façanha de proto-donas de casa mal amadas... não se perdeu de fato a possibilidade de evidenciar as fantásticas diferenças entre os mundos, as idéias e conceitos – num amplo sentido dessas palabras – e o que deveria ser masculino ou feminino? É tão tênue o que nos separa que já nos demos conta de que nenhuma igualdade importa. “X” a mais “y” a menos, a incógnita é a mesma. O importante são essas minucias que nos distingüem, nos inter-relaci onam e nos complementam.

A situação melhorou, mas está longe do ideal alcançável. De fato, mulheres “barbudas” hoje em dia não são personagens de
antiquados circos ambulantes. Estão aí, com seus “culhões” prontos para foder o mundo, imitando seus pais, seus profesores, seus artistas preferidos, todos homens com “h” de “halma”; estão aí, candidatas à presidencia de repúblicas representando o sistema operante, nos corredores do sistema judiciario fumando charutos com seus comparsas, nas arquibancadas dos estádios de futebol gritando vulgaridades, governantes de gravata, docentes com palmatória, top-models coçando a xota, tornando duro e fálico seus clítoris nos programas televisivos, nos anuncios publicitarios, aliás, acaso não me engane, meios inventados por homens. Distraídas mulheres, sensuais princesinhas nos calabouços 60 90 60, tristes pr incesas nos espelhos das bruxas, dos monstros das rugas que “assustam” apenas àqueles que se divertem olhando as cifras das empresas que se alimentam do próprio monstro. Empresas em sua mayoría controladas por homens, é claro.

Os homens controlam o tempo. Ejaculam. São os melhores colecionistas de qualquer coisa. Reis dos récordes. Da infamia.
Protagonistas por excelência. Inventores da história. Da roda. Da linguagem.

Na Bíblia, livro escrito por homens, eram estes que falavam diretamente com Deus e recebiam as divinas leis para transmitir
ao resto do povo. Os grandes profetas foram homens. Não poderia ter existido a “filha pródiga”, o Messias sería um homem, Deus na terra só poderia estar na figura de um homem. Foi um homem o crucificado pelo amor ao resto do mundo. Assim como a palabra “universo” é masculina na maioria dos idiomas conhecidos.

Se pareço sexista não percebo ou não chego a explicar-me bem. Mas até as fadas necesitavam varinhas para ter o poder mágico. As bruxas seriam menos bruxas sem suas vassouras para voar. Toda mulher necessita de um símbolo, um amém ou
um signo masculino para existir plenamente? As mulatas do Sargentelli, as baianinhas de vestido curto mostrando as coxas da cor de canela de Amado. As heroínas com espingardas ou espadas nas batalhas (provocadas por homens) de norte a sul. As putas ou as mal amadas da classe C. As pervertidas, mimadas e inescrupulosas madames da alta sociedade. As bonitinhas, as ordinárias, as lésbicas, as tesudas, as raimundas, as mulheres-bundas, loiras burras, as elegantes de caridade, as madre teresas... é disso que vivem as mulheres? A resposta está na ponta da língua e é um sonoro não.

O que é literatura feminina? O que lêem e escrevem as mulheres? Onde estão as Clarices, as Anas Cristinas, as Anaïs, as Djunas, as Hildas, as Eleonoras que quase não as vejo?

Onde está a essência feminina que não se percebe nas mulheres modélicas atuais? Existiu ou é possível que exista isso algum dia, quero dizer, uma mitologia feminina criada pelas próprias mulheres? Não relaciona-se o feminino com atributos que são puramente oferendas ao mundo masculino?

Creio que reação é uma palabra feminina. Revolução também. Acredito que nossa civilização, nossas sociedades tão desgastadas e subdesenvolvidas, só poderia realmente reativar-se em direção a um futuro mais humano se feminilizássemos em um primeiro momento nossa imaginação. Cada dia, no dia a dia. Completamente. (Excessões à parte, não necessitamos de mais marionetes Condoleezzas entre os “arbustos”). Assim seria possível embalsamar todos esses séculos; seria mais espontáneo e menos delicado estarmos vivos. Essa monstruosa capacidade de ver e entender o mundo. Que não sejam pilares recheados de músculos, veias e sangue que sustentem nossas vidas. Podería ser algo mais sutil, interiorizado, em direção ao interior para depois enfim ser exteriorizado. Que nascessemos vivos sem a nostalgia e o confinamento do útero materno. Que fosse uma boa lembrança para o futuro o fato de olharmos para o umbigo, o sorriso e a docilidade um ato fortuito, um fluxo contínuo. É isso possível? Ou por ser um homem – e por isso sumamente vingativo – me engano, ilusionando-me com outra ordem das coisas? É claro que sou como qualquer outro. Mas um pouco mais cínico, escético, mais arrependido; muitas vezes mais ambígüo que qualquer mulher. Um pouco hipócrita e dividido, talvez. Até maniqueísta na confiança que deposito na alma feminina. No entanto sou mais espontâneo quando necessito chorar, sem medo de parecer sensível quando sinto que assim posso e devo atuar. E isso aprendi com elas. Não ter medo. Inclusive não tenho medo de cruzar as pernas. Sinto alívio. Mas sou de matérias brutas, minha bússula se confunde pelo caminho, tenho um par de testículos e um pau para alimentar. Gosto de fazer sexo com mulheres. Sou Caím. Sou um símio. Um antropófago imaginativo e selecionador da espécie que me apetece. De fato, no fundo também quero ser dono, filho, proprietário, ladrão, amante. Faço cálculos e estratagemas a meu favor. Sou rasteiro, espero o momento exato e fatídico. Deito e durmo e ronco como um porco. Mijo em pé. Me revolto e me enfureço. Meus músculos pesam. Me afeito. Tenho pêlos no rosto. Calço 43. O olfato me desvirtua os sentidos. Me atraio e me traiciono, sou selvagem, me masturbo e me lambuzo com os poros femininos. Minhas glândulas me delatam. Me condeno e mando meus mais sinceros “que se fodam” quando estou faminto. Rude. Sou o colosso. O inatingível. Mas não sou mais que um garotinho.

Cláudio T. Brux
8 de março 2003


 
 

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