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Naufragou muitas vezes na própria resistência. Teve saudades
da chuva, do líquido viscoso escorrendo pelas
estações das águas, sentiu falta dos olhos que
a desvendaram como uma lupa e das carícias que se perderam num vento
sem causa. Morreu várias vezes com o corpo cravado de dúvidas
e reviveu sem nenhuma certeza. Empobreceu por ter perdido o sonho e por
compreender não haver nada mais a perder. Seus olhos, agora, são
donos de uma paisagem horizontal que a corta ao meio e dói cada
segundo que traspassa seu corpo habitado pela mais noturna das noites.Vive
descalça para se energizar ou para ver se desata o nó do
peito, e na sacada do apartamento permanece atenta ouvindo vozes fragilizadas
cortando o ar, amores fracos que terminam com o alvorecer e deixam expostos
uma ferida duvidosa, uma explosão surda e silenciosa querendo sair
pela garganta, querendo arrebentar as portas, querendo arrancar do corpo
uma dor, mas a lágrima é engolida com um sorriso falso e
com a esperança de amanhã talvez outro alguém mais
interessante.
Mulheres tentando pôr as coisas onde não alcançam. Mulheres tentando assimilar a felicidade passageira de uma noite, guardando o amargo de um beijo, a acidez de uma bebida que a fará dormir, durante o dia, o sono do esquecimento, fingindo nada ter acontecido e que, o resultado não foi assim tão doloroso.
Vê um casal entrando num estabelecimento. Acima uma placa de néon com os dizeres “otel”, a primeira letra já se havia apagado. Que triste! Um ar de desesperança, um ar morno, um reflexo das letras na poça d`água. De repente uma mulher não querendo esquecer, de repente uma mulher lavando o rosto com água fria, umas roupas jogadas pelos cantos, memórias pequenas esparramadas pela cama, coisas misturadas, ressentidas... e uma teia de aranha crescendo no pensamento, mas ela adia a angustia, desvira o vestido do avesso, calça o par de sapatos que ele nem reparou... engole o resto de líquido do copo e faz cara de mulher satisfeita... de repente se acha burra, idiota... e sorri alto tentando disfarçar o embaraço, tentando não demonstrar que no fundo é um bicho desamparado e joga palavras ao vento para que ele não tenha pena e não se dê conta de que debaixo das curvas profundas bate um coração como um brilhante explodindo em cores. Talvez ele nunca tenha conhecido isso. E ela ali jogando com o destino, jogando com as possibilidades. Tentando desvendar o enigma, a carta na manga. Mas o homem sempre cheio de mistério continua a penetrar o corpo porque sente medo de penetrar a alma, ou prefere viver assim com a certeza do dever cumprido, com a convicção de macho que não se entrega e continua misterioso.
A rua lá embaixo a deprime. Melhor deixar a madrugada morrer na avenida com um pouco de frio, um pouco de marginalidade, um pouco de insônia, um pouco de silêncio nas almas multifacetadas e vai dormir com a trilha sonora do vento zunindo no vidro.
Lucilene Machado