![]() |
|
![]() |
E pois com a nau no mar,
Assestamos a quilha contra as vagas
E frente ao mar divino içamos vela
No mastro sobre aquela nave escura,
Levamos as ovelhas a bordo e
Nossos corpos também no pranto aflito,
E ventos vindos pela popa nos
Impeliam adiante, velas cheias,
Por artifício de Circe,
A deusa benecomata.
Tradução de José Lino Grünewald. Foi-me dada por Helena. O texto se move para frente, nau no mar quilha contra vagas impelindo adiante. O adjetivo "divino" cobre tudo, ambiente de mito. A "nave escura" veste o leitor de sugestão de destino. Trágico. Ovelhas a bordo ("e os nossos corpos") se abre ao sacrifício. Vem "o pranto aflito". Velas cheias. Deusa benecomata (tradução de "the trim-coifed", vestida de sua própria cabeleira(?)). Atmosfera homérica. O original reza:
And then went down to the ship,
Set keel to breakers, forth on the godly sea, and
We set up mast and sail on that swart ship,
Bore sheep aboard her, and our bodies also
Heavy with weeping, and winds from sternward
Bore us onward with bellying canvas,
Circe's this craft, the trim-coifed goddess.
Prossegue a tradução:
Assim no barco assentados
Cana do leme sacudida em vento
Então com vela tensa, pelo mar
Fomos até o término do dia.
É o sol. É o Barco no mar. É o horizonte até o Término do dia. Bela imagem:
Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano
Chegamos aos confins das águas mais profundas.
O tradutor abusou da maestria, compôs tudo em "O", do Sol, do sol-maior: "Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano" - (Sun to his slumber, shadows o'er all the ocean)
E cidades povoadas envolvidas
Por um denso nevoeiro, inacessível
Ao cintilar dos raios do sol, nem a
O luzir das estrelas estendido,
Nem quando torna o olhar do firmamento
Noite, a mais negra sobre os homens fúnebres.
Esse texto me foi trazido pela morte de minha querida Helena. Como ela desaparecia, não me preocupei. Ontem fui a seu apartamento: o porteiro me disse que foi encontrada morta na sala muito tempo depois por indagação dos vizinhos. Quero invocá-la: A minha Helena: Bela, grande dama, educada nos Estados Unidos, conheci-a numa biblioteca. Onde poderia deixar de ser? Helena tornou-se companheira inseparável durante décadas. Dias houve em que a vi todos os dias. Ambiente da Paidéia. Nevoeiro denso.
Sangue escuro escoou dentro do fosso,
Almas vindas do Erebus, mortos cadavéricos,
De noivas, jovens, velhos, que muito penaram;
Úmidas almas de recentes lágrimas,
Meigas moças, muitos homens
Esfolados por lanças cor de bronze,
Desperdício de guerra, e com armas em sangue
Eles em turba em torno de mim, a gritar,
Pálido, reclamei-lhes por mais bestas;
Não consigo chorar a morte de Helena. Não consigo crer.
Sua família tinha sido muito rica, ascendência nobre. "Tenho
dois arcebispos na família", me disse, certa vez. Seu bisavô
sócio do Barão de Nova Friburgo, que tinha doze fazendas
de café e construiu o Palácio do Catete, sede do governo
brasileiro até Juscelino. Pois Helena pobre, vivia de aposentadoria
do INPS. Sentia dificuldade de pagar seu condomínio. Nunca perdeu
a pose de grande dama (como diz D. Nancy), porte altivo, como se estivesse
em Palácio. Usava uns brincos de plásticos coloridos e umas
bijuterias baratas de aço que no seu corpo pareciam reluzentes jóias
preciosas. Meu Deus!, perto dela a conversa alongava a noite, a prodigiosa
memória dos fatos, a cultura enciclopédica. Meus Deus, como
eu a amava! Narrava viagens. Paris. Gesticulava. Como se estivesse no salão
da marquesa sua tia. Vendera seus bens para viajar, jóias, apartamentos.
Vendia imóvel (que não eram grandes coisas, quartos e sala).
Gastava todo o dinheiro em Paris. "A única coisa que não
se perde são as viagens", dizia. Certa vez arriscou seu salário
comprando uma cadeira antiga. "Preciso dela, para compor um canto da sala",
comentou. Eu estava junto. Morava num belo apartamento no Flamengo, único
bem que restou. Tinha boa biblioteca, num dos cômodos, - mas pasme!
-, nunca possuiu um aparelho de TV. Não via nunca tevê. Quando
sozinha, restava na sala, livro nas mãos, ou se perdia em suas divagações.
Lembro de seus belos quadros, do carrilhão. Helena servia o chá
que bebíamos em Sèvres que pertenceram a sua tia, namorada
do Conde Carneiro Ribeiro, quando este ainda solteiro. A tia recusara-se
a casar com o Conde, dono do Jornal do Brasil. O chá, servido com
uns biscoitinhos que lembravam as madeleines de Proust... Ah, Helena! Meus
Deus, por quê?