Os Papéis da Mentira

         Vitalina era avessa às mentiras. Dizia que eram vermes peçonhentos que mastigavam a alma. Portanto, não mentia. Tinha medo de ficar com as tripas pra fora da alma. "Coisa indecente", ela dizia e arrematava: "Coisa de gente sem compostura!". E era assim, com muita compostura, que ela torcia o nariz para os mentirosos. E por mais que alguém tentasse convencê-la da inocuidade de uma boa mentira, ela bufava pelas ventas e amaldiçoava o coitado: "Ora já se viu mentira boa?! Mentira é obra do Tinhoso e dos seus filhos descomposturados! Vá de reto, Satanás!".
    A sua aversão pela mentira chegou a tal ponto que um dia, sem mais nem quê, deu de desconfiar de tudo que envolvesse papéis. Aboliu votos, receitas de médico, contratos, recibos, contas de luz, de gás, de telefone, e até certidões. Rasgou a certidão de nascimento e de casamento. E preocupada com a de óbito, decidiu que esconderia o seu corpo quando morresse (coisa que quase conseguiu muitos anos mais tarde).
  E foi assim, sempre com muita compostura, que um belo dia fez uma descoberta que, se fosse de um teólogo e não de uma mulher, revolucionaria o mundo inabalável da fé. Descobriu o rosto do Tinhoso! E de quebra, a data do seu nascimento! Guardou a descoberta a dezenove chaves (não me pergunte por que dezenove, Vitalina tinha os seus mistérios...). Deu de ficar calada e de se benzer quando as contas escorregavam por debaixo da porta de entrada.
    Daquele dia da descoberta em diante, passou a rezar para uma santa desconhecida: Nossa Senhora da Compostura. Como a santa era desconhecidíssima, não encontrou uma imagem à venda. Não deu bola ao fato e improvisou: modelou no barro uma mulher com um enorme buraco no ventre. A cada conta, contrato, santinho de político, carta de amigo infiel e recibo que chegavam, ela os picava e incendiava dentro do ventre da santa. Nossa Senhora da Compostura ardia em satisfação. Ardeu tanto que um dia deu de fazer milagres: enviuvou uma vizinha de Vitalina que, sabedora das mentiras dos papéis e da virgem que as dissolvia, rasgou a certidão de um casamento infeliz e queimou-a no ventre da santa. O fogo foi tão forte que o marido, justamente na hora em que o papel lambia em labaredas, sofreu um acidente: morreu tostado num incêndio no posto de gasolina!
 Com o sucesso da santa, ou talvez apavorada com o rumo que as mentiras andavam tomando no mundo dos homens, Vitalina acabou revelando a identidade do Tinhoso: uma folha branca reconhecida em cartório e amparada pelas legislações!


  

Justina e os Infortúnios da Virtude

     Justina não era um caso de plágio. Era a prova incontestável das coincidências de mau gosto que Deus costuma pregar. De Justine, a prima distante, filha de Sade, um tio mais distante ainda, Justina não sabia nada. Bem verdade que se tivesse um pouquinho de estudo e pudesse ter lido o capítulo das Invasões Francesas no livro de História do Brasil, concluiria um possível parentesco. Mas os estudos tinham passado reto por ela.
    E assim, inconsciente da História e de uma provável genealogia, Justina cresceu Crédula da Silva. Aos cinco anos voltou-se para as credulices da Igreja. E mesmo recusada para anjinho de procissão, não perdia missa, novena e romaria. Dentre as beatas, era a mais fervorosa. Acreditava por fé e logo se tornou a menina dos olhos do padre. Foi deflorada em nome de Deus, debaixo da mesa da sacristia. Da defloração divina, aos treze anos concebeu Jesus Crédulo da Silva. A porta da casa de Deus lhe foi fechada nas ventas. Mas não perdeu a fé e se foi com Jesus para outras ribas.
    Largada pelos caprichos de Deus, caiu nos braços do pastor de Jeová. Deu a ele o corpo, a alma e metade do salário que ganhava como bóia fria. A união perdurou até o dia em que a barriga cresceu e a bóia requentou e criou rombo. Mais uma vez não perdeu a fé e se foi para outras ribas com Jesus e o filho de Satanás (o pastor dissera que o filho era dele) na barriga.
    Talvez pelo pai sulfuroso, ou pela agulha de tricô velha e mal lavada, ou pelo chá de canela e cravo de defunto, abortou o filho e algumas tripas. Por este pecado foi presa e condenada. Jesus foi levado por Valentina, uma "santa" senhora que conhecera ao entrar na delegacia. Justina ficou presa por alguns meses e passou o pão que o Diabo amassou. Mas não perdeu a fé e depois de cumprida a pena se foi para outras ribas sem Jesus, sem o filho de Satanás e sem as tripas da barriga.
    Chegou na cidade grande num dia em que a polícia batia nos camelôs de rua. Foi confundida com um deles e teve os braços e as pernas quebrados pelos cacetetes. Não adiantou dizer que não era pirata e que não tinha conexão com nenhum; o delegado não acreditou e outra vez voltou à prisâo. Mas não perdeu a fé e na cadeia decidiu se dedicar ao cultivo das plantas. A cela úmida e sombria ficou um primor com tanta verdura!
    A lavoura durou alguns meses e quando estava prestes a ser colhida, Deus pregou mais uma peça de mau gosto e mistério. Justina amanheceu morta, coberta e devorada por gafanhotos famintos. Nas mãos, um recorte de jornal com a foto de Valentina e a de Jesus, mutilado.
    Os gafanhotos? Ah, esses certamente serão salvos pelo palavreado dos homens da lei!
    Valentina? Acabou de ser solta por esses mesmos homens da lei...

Marcia Frazão

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