Variações em torno da paixão
Paixão é a alucinação amorosa. E os apaixonados
são de duas espécies: os generosos, que se dão inteiramente,
se jogando nas mãos do outro, e os possessivos, que querem que o
outro se incorpore a eles convertidos em sombra viva.
Mas talvez haja um terceiro tipo: o dos que não se apaixonam,
mas despertam paixões. Na impossibilidade ou no medo de se apaixonar,
posto que paixão é abismo, alimentam-se da paixão
alheia, ou melhor, incentivam a paixão em torno para preencher algo
em si.
Paixão, por isso é arma de dois ou três gumes.
E corta. E sangra. Se não sangrou, se não teve insônia,
se não desesperou, se não ficou com a alma dependurada num
fio de telefone, se não ficou exposto na úmida espera, paixão
não era.
Talvez fosse desejo, que o desejo é diferente.
No desejo a gente quer o outro para possuí-lo apenas passageiramente.
É como se fosse um apetite despertado por um fruto ou alguma comida
saborosa que saliva nossos sentidos. É como se fosse possuir um
objeto na vitrina. É um
desejo de posse natural, estético, erótico, mas sendo
mais desejo que qualquer outra coisa, isto vai passar.
E passa.
Na paixão, não.
Na paixão, a gente quer fundir com o outro. Para sempre. De
corpo e alma.
Perde totalmente o centro de gravidade. Transfere a moradia de seu
ser para a casa do alheio. É como se vestisse a pele do outro. E
se o outro disser assim: "Vai ali buscar aquela estrela ou mesmo a Lua"
(como naquele lindo conto de Murilo Rubião chamado Bárbara),
se o outro disser isto, a gente vai airosamente buscar o que ele quer.
E se o outro disser: "Não estou gostando de seu nariz", a gente
opera, corta, joga fora, não só o nariz, mas qualquer outra
coisa, porque, nesse caso, qualquer palavra ou sugestão é
ordem.
A paixão é boa?
A paixão é ruim?
Ninguém sabe. Ela acontece. Como certas tempestades, ela acontece.
Assim como depois dos vendavais os elementos da natureza já não
são os mesmos, ninguém será o que era depois do desvario
da paixão.
Vidas renascem com paixões.
Outras viram cinzas por causa dela.
E há pessoas que são como aquela ave mítica -
a Fênix, vivem renascendo das cinzas da paixão.
Marx, portanto, errou completamente. Não é a luta de
classes que move a história, é a paixão. Paixão
é a revolução a dois. Ela desafia o sistema.
Diante dela a comunidade fica abalada. A paixão é anti-social
e egoísta, no que é diferente do amor maduro, longo e duradouro,
que fecunda a vida dos amantes e reforça os laços da comunidade.
Com Romeu e Julieta, por exemplo, fez-se a revolução a dois.
Foi assim com Tristão e Isolda, com Genevieve e Lancelot. Não
é de hoje que os reinos se fazem e se refazem por causa da paixão.
Existe diferença entre amor e paixão?
No amor, claro que há luminosa coabitação. Mas
o amor é também paciente construção. Já
a paixão é arrebatamento puro e aí a voragem é
tão grande que pode tudo se esgotar de repente.
Quantas vezes se apaixona numa vida?
Há gente que vive se inventando paixões para viver, que
vive morrendo de amor. E há gente que organiza toda sua vida em
torno de uma única e consumidora paixão.
Paixão é transgressão. Quanto mais obstáculos
inventarem, mais o apaixonado os saltará. E o apaixonado não
tem medo do ridículo. O que lhe importa o mundo, se seu mundo é
apenas o mundo da pessoa amada?
A paixão tem cor. Mais que vermelha e rubra, é roxa.
Pressupõe morte e ressurreição.
De paixão vivemos muito.
De paixão morremos sempre.
Affonso Romano de Sant'Anna