"LETRAS CLÁSSICAS ", POR HENRIQUE CAIRUS

Professor Dr., Coordenador do Departamento de Letras Clássicas da UFRJ (Pós-Graduação), ensaísta, poeta, co-editor de CALÍOPE: Presença Clássica, revista do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas e do Dep. de Letras Clássicas da UFRJ. Na Internet, veicula a lista: PGclassicas - Pós-Graduação em Letras Clássicas - UFRJ e tem site pessoal: http://www.geocities.com/henriquecairus/

Coluna da primeira quinzena de setembro 2004
(próxima coluna: 19/09)

Etimologias

Poucos conhecimentos são mais sedutores do que o da etimologia. Todos gostamos muito de saber de onde vêm as palavras que usamos.

Do tupi, do grego, do latim ou do árabe, essas origens nos encantam e nos proporcionam uma sensação indescritível de participarmos de um enredo em cujo fim muitos julgam encontrar-se.

As etimologias têm servido, portanto, para propiciar essa inserção na história através de uma língua que nos une às nossas origens, às origens que desejamos. Esse primado devolve-nos a Idade Média, a Antigüidade, mas também a delícia que é cortarmos transversalmente essa linhagem européia, com nossos étimos africanos e autóctones.

Tudo isso a etimologia tem nos dado, e mais, ela ainda oferece algumas ajudas nada desprezíveis nos apuros ortográficos em quase todas as línguas européias. Apesar de tantos benefícios que o conhecimento das raízes dos vocábulos é capaz de oferecer, ainda se quer extrair dele o que ele simplesmente não pode dar.

Em um contexto em que já não se faz mais necessário essa inserção, dada mais pela mídia do que pela partilha de um passado comum, prolonga-se o primeiro atentado ao uso da etimologia.

Cada vez com mais freqüência ouvimos que tal palavra vernacular tem – ou não tem – tal ou qual significado porque em grego significava isso ou aquilo, ou isso ou aquilo em latim. Não é preciso dizer o quanto é errado isso, mas o problema é que continuamos ouvindo esse tipo de coisa em ambientes cada vez mais elevados.

Dessas etimologias supremas, capazes de imperar sobre a semântica, destacam-se as que se relacionam com o grego. Parece irônico, é verdade: pois é justo aí que nos distanciamos mais do étimo. Isso porque não herdamos nenhuma palavra diretamente do grego. As palavras passaram ou pelo latim ou pela necessidade de neologismos que a tecnologia e a ciência nos impuseram.

Assim chegou-nos a palavra ‘gramática', do latim ‘grammatica', e não do grego ‘grammatiké (tékhne)', com o qual o português nunca teve o menor contato. Pela outra via, chegaram-nos palavras como ‘telefone', que – escusa-se dizer – não fazia parte da realidade da Antigüidade ou da Idade Média.

Claro que ‘grammatica' foi uma palavra importada do grego. Claro! Mas está lá, na língua latina – e, por conseqüência, no dicionário latino. Desse uso e dessa apropriação completa redundou a nossa ‘gramática', e não de uma outra idéia e de um outro uso que os gregos, em sua insondável pluralidade étnica, atribuíam à ‘grammatiké (tékhne)'.

O grande Ferreira Gullar teria dito certa vez que a crase não foi feita para humilhar ninguém. Pois adapto e digo: a etimologia não foi feita para ensinar semântica a ninguém.

Resta agora apenas dizer que há uma etimologia que precisa ser feita, uma que não –hesito em chamar de ‘história dos étimos', e que procure auxiliar o historiador da língua a localizar o texto e o contexto de um momento de um determinado uso de um determinado étimo. Alguns dicionários etimológicos já deram um grande passo nessa direção, registrando o que consideraram momentos-chave dessas histórias. Mas muita coisa ficou por fazer, e é isso mesmo que acho que devem fazer os verdadeiros etimólogos, que deveriam também ser autênticos historiadores dos conceitos, e não normativistas da semântica usual, literária e sobretudo filosófica.


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