O RELÓGIO DAS ÁGUAS
FLAVIO GIMENEZ
Resvalo - O Relógio das Águas - Flavio Gimenez - fls. 08 - Blocos Online

Samira

Pele clara como a neve, olhos sagazes e vivos como os de uma corça. Os cabelos escuros, donos de uma vida própria, como se ondulantes com o vento de sua força interior. Ganha força própria seu brilho interior, ela sabe o que quer e apesar de ter sofrido muito, ainda pode se atirar ao mundo sem medo. Esse o seu segredo. Não tem limite minha paixão, sempre que a vejo.

– Como vai?

– Melhor agora que a vejo.

– Assim me deixa sem jeito.

– Que faço? Que posso fazer se morro de desejo?

Como desfazer um sentimento? Como guardar dentro de si um mundo, um vasto continente cheio de enormes vales, grandes oásis e lagoas sublimes? Esta é a sensação que tenho quando a vejo assim, sozinha, plena de si, com os olhos enormes fitando o meu rosto. Não deixo de contar a ela o que se passa, ela sempre tem uma palavra que apoia, outra que levanta a mão aveludada que traz consigo os carinhos que deveria dar, mas só se realizam na intenção.

Ela sabe de meus altos e baixos. Entende que hoje posso estar aqui, na sua frente, tomando um drinque com ela, em uma conversa sem sentido ou direção, e em outro correndo no carro a caminho do abismo. Depois eu ligo para ela e proponho que vá comigo a uma festa ou saia comigo para uma peça onde haverá a leitura de um texto de Antunes. Como é misteriosa a alma humana, como ela é misteriosa para mim, atrás de seu sorriso lindo, seus olhos mantêm distância e eu não sei realmente o que se passa, nem comigo, nem com ela.

Claro está que eu jamais poderia ficar perto dela sem sentir uma profunda dor, como fosse parte de mim que precisasse ser completada. Que posso fazer? Esconder isto de mim? Deixar meu braço adormecer enquanto o outro se move em direção ao vento? De que maneira posso evitar que ela cresça como uma onda cristalina em uma tarde assim em que eu e ela podemos vislumbrar o sol daqui do alto da Praça da Lapa?

– Conhecia esta praça?

– Ele me falava dela, mas nunca me trouxe aqui.

– Nem com as crianças?

– Nem.

– Desculpe.

– Não é sua culpa. É dele que nunca me trouxe, sempre envolvido com seu trabalho e... outras coisas, você sabe.

Seus olhos me fitavam e deles brotava aquela luz, aquela que me envolve em uma nuvem de calor e carinho. Ela tem esse poder, de transmutar instantaneamente toda amargura em suave reverberação. Até mesmo a declaração mais embevecida ganha ares de gracejo e tudo o que posso fazer então é sorrir de volta, pegar o copo, sorver a bebida lentamente, fitando sua pele alva, branca, o rubor que toma suas faces, o olhar rápido que ela dá ao relógio como a lembrar que tem compromissos que eu já não tenho.

– Já é tarde.

– Precisa ir mesmo?

– Tenho de pegar a menor na escola. Ela faz questão de me contar das provas que fez.

O sorriso, as famosas covinhas, as sardas se movimentando com a graça de pequenas ilhas, o suave jeito de colocar os cabelos de lado, assim ela me mata, assim ela me deixa confuso, ela é desta maneira, de um lado ousada, de outro recatada. Tudo se completa nela, tudo se arredonda em sua presença. Eu entorno o copo. O drinque cai como uma luva. Marcamos mais um encontro. Ela se levanta, dá-me um beijo na face, sua mão pousa na minha e ela se afasta. Não, ela não se afasta, tanto que meu copo permanece suspenso no ar, enquanto seu vulto esguio, esperto, se deixa tocar pela suave brisa lá de fora, à luz do sol que colore as roupas dela de uma estranha transparência e eu apenas adivinho o que há em seu contorno.

Suas mãos são longas e suas unhas são marcas de uma leoa em formação. Alguém olha de longe, eu sei que é ela. Nada tão romântico como eu gostaria, como eu sonhava, apenas esqueceu um detalhe: as chaves de seu carro estão comigo. Terá que vir buscá-las mais cedo ou mais tarde, sei que não gostará da brincadeira, mais uma vez ralhará com sua voz aguda, e depois, me dará outro beijo.

Quem sabe dessa vez será na outra face?