TEATRO QUASE INCOMPLETO 1º ATO
Se tivessem jogados búzios ou visto nas cartas algo semelhante para mim, mesmo se a cartomante fosse Madame Zaira, mulher que falava do passado, do presente, e que previa o futuro de modo infalível, eu simplesmente não teria acreditado. É que há cinco anos eu era mais velha do que agora, uma rabu-genta senhora de  dezenove anos, eterna e imutável. Meu mundo girara todas as suas voltas, e eu me sentara à espera que ele recomeçasse sua rotina. Nada me era desconhecido: por isso, o inesperado me foi tão violento; por isso, quando te vi, a surpresa do novo me encheu o pulmão de ar puro, feito mil janelas se abrindo de uma só vez. Não me lembro se nos amamos no quarto ou na sala, se me deixei penetrar, se fiquei em cima, embaixo, do lado, de quatro, se gozei roçando meu sexo nos lençóis, no chão, ou se nem gozei. Mas deve ter sido bom, porque comecei a sonhar contigo, a te querer sempre, enquanto dormia, enquanto comia, enquanto tomava banho, enquanto digitava, enquanto abria a geladeira, enquanto desligava o carro, enquanto bebia, enquanto estava sóbria. Passei a acreditar em tudo o que falavas, como se as palavras não fossem mais frágeis do que as promessas — embora nada prometesses, e eu nada aceitasse. Como se as palavras abrissem cofres e segredos e combinações, que dariam em outros cofres e segredos e combinações. Devemos ter feito tudo o que sabíamos pois não me recordo de termos guardado nenhuma surpresa para depois.
 
 

1º INTERVALO
E o inesperado aconteceu: te despediste, dizendo que te enganaste, não era amor, apenas tesão. Sentias muito, naturalmente (naturalmente nada sentias). Se ficássemos juntos, nos sufocaríamos, nos arrependeríamos. Vingativa, resolvi que aprenderia a te esquecer a qualquer preço, a qualquer hora, sob qualquer pretexto: porque chovia, porque fazia sol, porque ventava, porque era segunda-feira, porque era sábado, porque a praia ficava longe de minha casa, porque eu estava alegre, porque eu estava fingindo, porque era preciso. Mil homens me consumiram, mil mulheres me devoraram. E não saías de perto, mesmo à distância.  As lembranças eram inimigas ferozes, e meu corpo, um banco de dados teus. Ofensas: REGISTRA. Meu amor:  NÃO REGISTRA NÃO REGISTRA.
 
 
 

2º ATO
Anos depois, ainda era necessário manter aceso o ódio e fazê-lo dar crias, ali-mentar a chama votiva para o próximo sacrifício. "Madame Zaira vê o moço de cabelo encaracolado pensando em você..."  Não quero saber mais nada dele, Madame. Conta mais... "Vocês vão se encontrar em breve". Pagar para ouvir besteira. Saí amolada: Madame Zaira estava mais para alcoviteira do que para minha cúmplice. Mas ela acertara: voltaste. E se eu te sufocar? E se nos arrependermos? Não deu tempo de perguntar. Desta vez lembro-me de todos os detalhes: menstruada e seminua deixei que me semitocasses. Meus seios te excitavam; pontudos e provocativos cresciam na tua boca. Só isso precisavas para gozar e só isso te dei. Eu era tua sereia, parcialmente inacessível. E gozaste roçando igual a um gato: meus peitos, tuas almofadas que arranhavas voraz e faminto. Se eu tivesse gostado daquele teu amigo alto e barbudo, com olhar felino, também seria assim? Teria ele também se contentado só com meu peito, com partes de mim?
 

2º INTERVALO
Quando acordaste, eu já tinha partido. Queria que te sentisses usado, eu estava vingada. Empate. Não voltaríamos mais, não se erra duas vezes. Acabara, não pensava mais em ti. meu corpo já não vivia ao compasso do teu cio, teu nome eu já pronunciava sem dor. Eram-me indiferentes as notícias que os amigos me davam sobre tua vida, pouco me importava se passavas bem ou mal. Se tivesses morrido nesta cena, teria sido indiferente para mim, nem das lembranças boas eu precisava. Liberta, agora podia ter paz ou, então, fazer aquela viagem, pequena que fosse: ir a Petrópolis, almoçar lá na  cantina italiana, contente por estar só, una. CENA ONÍRICA: meu ato de rebeldia — imaginar uma viagem a Petrópolis... e depois não fazê-la. "Madame Zaira vê que vocês vão ficar juntos de novo e desta vez vai dar certo". Impossível. Já tínhamos experimentado de tudo, "de todas as maneiras que há de amar, já nos machucamos"... Minha vida se transformara em letra de música de Chico ou enredo de filme de Truffaut: "nem com ele nem sem ele".
 
 
 

3º ATO
Passaste a mão sobre minha roupa, paraste no decote, alisaste meus seios — FLASH BACK... temi tempestades. Tudo mudara pouco. Conservavas ainda ni-nhos-de-marimbondos na porta do teu quarto, a esteira era mesma, e a rede também, só mais desbotada. —  Por que só apareces quando estou menstruada? — disse, ou melhor, te ameacei... Não recuaste. Fuçaste meu vestido, metendo a cara entre minhas coxas, me possuindo longo, me comendo com todas as fomes (já bastavam os fastios), lambendo meu suor, me mostrando que todo arrepio é imortal e passageiro. Aceitar-te seria neurótico? Que se danassem!, afinal, de sentimentos sadios, os divórcios estavam cheios... Pelo menos, já sabíamos que irracionais seriam todos os nossos recomeços, e que a cada um deles se seguiriam ausências, como intervalos. Só que agora, amando sem corpo, driblávamos nossas almas... Única maneira de fazer com que, defendidos, camuflados, escondidos de nós sob falsa identidade, nossos nicks pudessem celebrar enfim as suas bodas, consumando, em paz, o seu pacto de sangue... virtual.
 
 
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