Solange Firmino

Professora do Ensino Fundamental e de Língua Portuguesa e Literatura do Ensino Médio. Escritora, pesquisadora. Estudou Cultura Greco-romana na UERJ com Junito Brandão, um dos maiores especialistas do país em cultura clássica.

Mito em contexto - Coluna 23
(Próxima: 5/5)


Narciso e sua imagem

Na mitologia, os oceanos e os rios eram elementos personificados que tiveram muitos filhos. O rio Céfiso e a ninfa Liríope tiveram Narciso como filho. Como as ninfas também são divindades ligadas à água, Narciso teria atração pela água por causa do pai e da mãe. E na água ele teve seu destino realizado.

Narciso era lindo e desejado pelas ninfas e jovens da Grécia, inclusive pelas deusas. Preocupada com as conseqüências de tanto assédio, sua mãe consultou o oráculo Tirésias, que disse que Narciso viveria muitos anos, desde que não se visse .

Embora fosse muito assediado, Narciso era insensível às paqueras. A ninfa Eco era um das mulheres apaixonadas por ele. Eco era muito tagarela e Zeus sempre pedia que ela distraísse a esposa Hera para que ele desse seus passeios amorosos. Após descobrir seu envolvimento, Hera condenou Eco a não falar mais, apenas repetiria os últimos sons que ouvisse.

Um dia Eco observava Narciso caçando com uns companheiros. Ele se afastou e logo começou a chamá-los. Sobre esse episódio há um poema de Ovídio em “Metamorfoses”, que diz assim em um trecho:

“...Narciso brada: Olá, Ninguém me escuta?
Escuta, lhe responde a amante Ninfa.
Ele pasma; em redor estira os olhos.
E, não vendo ninguém: Vem cá, lhe grita;
Convite igual ao seu parte dela.”

 

Narciso repeliu Eco, que se isolou na solidão. A ninfa definhou tanto que se transformou em rochedo, capaz apenas de repetir os sons do que dizemos. É o eco que conhecemos.

As ninfas, chateadas com a insensibilidade de Narciso, pediram vingança a Nêmesis, que representava a justiça divina. Nêmesis condenou Narciso a um amor impossível. Assim, num dia verão, o sedento Narciso se aproximou de uma fonte e debruçou sobre o espelho da água. Ao ver sua própria imagem refletida, se apaixonou por ela. Cumpriu a profecia de Tirésias e a maldição de Nêmesis.

O poeta Ovídio relatou em “Metamorfoses” também essa parte da tragédia:

“Deitou-se tentando matar a sede,
outra mais forte achou. Enquanto bebia,
viu-se na água e ficou embevecido com a própria imagem.”

Narciso se contemplou e admirou o que todos admiravam. Morreu de amor por si mesmo, buscando se fundir com o reflexo da sua imagem. No lugar do seu corpo acharam uma flor amarela de pétalas brancas no centro. Essa flor também tem um significado no mito de Deméter e Perséfone. A filha de Deméter, Perséfone, colhia narcisos quando foi raptada pelo deus Hades. E no Hades, nas águas escuras do rio Estige, Narciso ainda tentou se ver mais uma vez.

Há muitas interpretações para esse mito ao longo dos séculos. Talvez hoje ele se aplique perfeitamente nos assuntos sobre vaidade e narcisismo. O narcisista vê o mundo a partir de si próprio, não enxerga o outro, pois não sai de si mesmo. Tudo o que não seja ele é imperfeito, só seu corpo precisa de cuidados. Auto-estima é importante, mas quando há exagero, não temos mais amor ao próximo. E precisamos do outro para nos espelhar, para nos descobrir. E na era da imagem, devíamos aprender a olhar o mundo com olhos menos narcisistas e cuidar também do aperfeiçoamento do caráter e não somente do corpo.

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